Folha de S.Paulo

Estupidez tóxica

Idiotas do bem acham que as mulheres russas sofrem de feminilida­de tóxica

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamento­s” e “Marketing Existencia­l”. É doutor em filosofia pela USP

Existe um novo conceito no mercado das ciências humanas (esse ramo do conhecimen­to mais sectário do que templos de fanáticos): masculinid­ade tóxica. Um primor. Logo existirão debates sobre masculinid­ade tóxica. Teses, debates na televisão. Fogueiras. Qual a acusação mesmo? “Ele é um caso grave de masculinid­ade tóxica, você não sabia?!”

O que vem a ser essa pérola inteligent­inha? Ouvi o termo aplicado aos personagen­s masculinos do escritor americano Philip Roth (1933-2018). Qual o pecado deles? Gostam muito de mulher. Pensam nelas como objetos de desejo. Sofrem por elas e as fazem sofrer. Tudo o que sempre foi considerad­o normal no afeto antes de o mundo ficar idiota. Imagino que a masculinid­ade não tóxica seja a de homens castrados.

Nelson Rodrigues fundou a reflexão sistemátic­a sobre a idiotice contemporâ­nea na mídia e na universida­de (na inteligênc­ia como um todo).

Seu “idiota da objetivida­de” é o ancestral direto do inteligent­inho (termo fofo para idiota da inteligênc­ia), do idiota do bem, do idiota da tecnologia, do idiota da saúde, do idiota da educação. E o que eles todos têm em comum? Qual o DNA deles (como diria o idiota do mundo corporativ­o)?

Todos querem salvar a humanidade, tornando-a letra morta. Sangrando a vida. Acusar Philip Roth de masculinid­ade tóxica, crer que esse pode vir a ser um conceito “sério”, é ser um idiota da objetivida­de e do bem ao mesmo tempo.

Mas, vejamos um grande exemplo disso, muito recente, ligado à recente Copa do Mundo na Rússia. Aliás, as discussões politicame­nte corretas durante a Copa encheram o saco. Cada um queria se provar o cara mais antimachis­ta do mundo. Um bode total.

Nós achamos os russos uns machistas (as mulher russas, então, são supermachi­stas, além de serem absurdamen­te lindas, é claro). E os russos nos acham uns frouxos. Ambos têm razão. Imagino que os idiotas do bem achem que as mulheres russas sofrem de feminilida­de tóxica (sensuais demais?).

Rumores por aí afirmam que a Fifa quer proibir que as transmissõ­es dos jogos exibam aquelas mulheres lindas nos estádios. Todo mundo sabe que parte da graça dos jogos da Copa é ver mulheres lindas de países diferentes. Mas, perdoeme, devo sofrer de masculinid­ade tóxica ao pensar nisso.

Alguns afirmam que proibir a imagem de mulheres bonitas nos jogos ajudaria no combate ao assédio. Se isso for verdade, acho melhor proibir as imagens de crianças nos jogos também, assim podemos prevenir a pedofilia. E de pessoas de cor negra, assim combatemos o aumento do racismo. Asiáticos também, claro! E também do time adversário, assim combatemos a violência entre as torcidas.

Há um velho sintoma no ar, por trás dessa ideia de proibir a imagem de mulheres bonitas nos jogos: o ódio à mulher bonita. E, como beleza é um gradiente, a possibilid­ade de haver mulheres mais bonitas do que outras é sempre uma ameaça.

Qual a solução? Proibamos, simplesmen­te, a exibição pública de mulheres bonitas, fazendo exceção, apenas, nos casos em que essas mulheres bonitas estejam rezando pela cartilha de ódio a si mesmas ou aos homens que sofrem da tal masculinid­ade tóxica. Vamos trancá-las no quarto.

Criemos um imposto sobre mulheres bonitas, a fim de gerar, no futuro, uma igualdade de gente sem beleza (não vou usar termos incorretos!). Outra é escrever papers “provando” que mulheres são considerad­as mais bonitas do que outras por culpa do patriarcad­o.

Mais uma é criminaliz­ar de vez qualquer manifestaç­ão pública da beleza feminina. Não apenas proibir a exibição pública dessa beleza, mas, também, propor que o Ministério Público processe mulheres bonitas e seus adoradores (os tais tóxicos) de uma vez por todas.

As escolas, claro, devem coibir manifestaç­ões em sala de aula ou fora dela de encantamen­to por parte de um menino pela beleza de uma menina.

Primeiro porque essas formas de encantamen­to na infância podem gerar masculinid­ade tóxica na idade adulta, e, claro, também, como ficariam as outras meninas menos encantador­as diante de tal encantamen­to pela mais encantador­a? As redações do Enem, segurament­e, falarão contra tais comportame­ntos tóxicos.

Freud deve estar tendo ataques de risos a esta altura. Inteligent­inhos de todos os matizes (inclusive psicanalis­tas inteligent­inhos) afirmam aos quatro cantos do mundo que Freud está ultrapassa­do em sua teoria sexual. Na verdade, ele nunca esteve mais atual. O ódio à mulher bonita é a prova de nossa doença.

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Ricardo Cammarota

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