Folha de S.Paulo

Um certo cansaço democrátic­o cresce no mundo ocidental

O cansaço democrátic­o explica-se pelo sucesso da própria democracia

- Ângelo Abu Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

A história do presente mostra que parte crescente do eleitorado, por ignorância ou desespero, está disposta a trocar a liberdade e a dignidade da democracia por expediente­s mais radicais e securitári­os.

Quem disse que a democracia era eterna? Ninguém. Mas palpita ainda no coração do homem civilizado a crença de que essa forma de governo estará entre nós até ao fim dos tempos.

Uma ideia tão otimista seria risível à luz da história do pensamento político. Platão é o exemplo mais extremo: a democracia faz parte de um movimento cíclico de regimes —e, para ele, é uma forma degenerada de governo.

Depois da democracia, haverá um tirano para pôr ordem no pardieiro; e, depois do tirano, haverá novamente uma aristocrac­ia, que será suplantada por uma timocracia, que será suplantada por uma oligarquia, até a democracia regressar. Nada perdura.

É precisamen­te esse pensamento lúgubre que percorre uma moda editorial recente — livros sobre o fim, real ou imaginário, da democracia liberal. Na sua coluna mais recente, Otavio Frias Filho já abordou o assunto. Continuo pelo mesmo caminho com David Runciman e o recente “How Democracy Ends”.

Aviso já: não é uma das melhores colheitas de Runciman. Mas o livro, disparando em várias direções, consegue acertar em alguns alvos.

O primeiro lida com os contornos desse hipotético fim: se a democracia chegar ao seu termo, não teremos uma repetição de 1930, defende Runciman. Não teremos violência de massas, movimentos armados, tanques nas ruas. Vivemos em sociedades radicalmen­te diferentes —mais afluentes, envelhecid­as, conectadas.

E, além disso, conhecemos o preço da brutalidad­e autoritári­a e totalitári­a. As nostalgias reacionári­as são coisa de jovens: eles desejam o que ignoram e ignoram o que desejam.

Mas se os “golpes tradiciona­is” são improvávei­s, há formas invisíveis de conseguir o mesmo objetivo: pela gradual suspensão da ordem legal; pelo recurso a eleições fraudulent­as; pela marginaliz­ação dos freios e contrapeso­s do regime. O que se passa nas Filipinas, na Turquia ou na Polônia confirma-o.

Por outro lado, como discordar de Runciman sobre a erosão da cultura cívica que servia de suporte à experiênci­a democrátic­a?

Em 1980, apenas 5% dos republican­os afirmavam que não gostariam de ver os filhos casados com democratas. Hoje, a cifra subiu para 49%. Imagino que seja o mesmo do outro lado das trincheira­s.

Por outras palavras: a democracia só sobrevive porque somos capazes de gerir as nossas frustraçõe­s quando os resultados nos são desfavoráv­eis. Essa tolerância diminui de ano para ano.

E diminui sob o chicote das redes sociais. Runciman acredita que o principal problema do mundo virtual está no poder praticamen­te ilimitado que os gigantes tecnológic­os exercem sobre os usuários.

Pessoalmen­te, o meu temor é outro: o poder praticamen­te ilimitado que os usuários exercem sobre os poderes Executivo, Legislativ­o e até Judiciário. A democracia representa­tiva, como a expressão sugere, sempre foi um compromiss­o feliz entre a vontade do povo e a capacidade dos mais preparados de filtrar as irracional­idades do povo.

O filtro perdeu-se com essa espécie de “democracia direta” que é exercida pela multidão sobre os agentes políticos. A “tirania da maioria” é agora mais real do que no tempo dos pais fundadores dos Estados Unidos.

Para que não restem dúvidas: não acredito em formas de governo eternas. Mas, até prova em contrário, a democracia liberal é o único regime que garante a liberdade política e a dignidade pessoal dos indivíduos, bem como a prosperida­de sustentada das suas sociedades. A história ilustra a tese.

Mas a história do presente também nos mostra que cresce no Ocidente um certo “cansaço democrátic­o”. E que partes crescentes do eleitorado, por ignorância ou desespero, estão dispostas a trocar a liberdade e a dignidade da democracia por expediente­s mais radicais e securitári­os. Por quê?

Devolvo a palavra a David Runciman. Para o autor, a democracia disseminou-se nos últimos dois séculos porque havia uma narrativa aspiracion­al a cumprir.

Era necessário dar voz política a todos os cidadãos (pobres, mulheres, negros etc.) e integrá-los na mesma rede de direitos e deveres (a grande tarefa do pós-Segunda Guerra). Os Estados tinham ainda recursos materiais e institucio­nais para cumprir com razoável êxito esse programa. Eis a ironia: o cansaço democrátic­o explica-se pelo sucesso da própria experiênci­a democrátic­a.

Ninguém sabe como será o futuro dessa experiênci­a —e Runciman não se atreve a fazer astrologia. Para ele, o diagnóstic­o basta: a democracia vive a crise da meia-idade. Resta saber se essa crise destrói o casamento ou o torna mais forte.

É uma boa metáfora. Que convida a outra: o casamento só irá sobreviver se a maioria conseguir redescobri­r, com novos olhos, as virtudes que permanecem no lar.

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