Folha de S.Paulo

Águas sujentas

Não há como não relacionar a alta do índice de mortalidad­e com a falta de saneamento

- Benjamin Steinbruch

Uma das mais deprimente­s notícias sobre realidade brasileira foi publicada pela Folha há uma semana: a mortalidad­e infantil cresceu no país pela primeira vez em 26 anos. A estatístic­a se refere a 2016, quando a taxa de mortalidad­e aumentou 5% em relação ao ano anterior e atingiu 14 óbitos infantis para cada mil nascimento­s.

É triste que isso tenha acontecido, porque a mortalidad­e infantil é certamente um dos principais indicadore­s da sanidade social e econômica de um país. Desde 1990, esse índice vinha recuando e se aproximava do nível considerad­o aceitável pela OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde), de dez mortes para cada mil bebês nascidos vivos.

Entre as causas apontadas para o retrocesso destacamse a epidemia do vírus da zika, doenças que provocam diarreia nas crianças e a crise econômica, que desemprega e reduz a renda das famílias.

Não há como não relacionar o aumento do índice de mortalidad­e com a falta de saneamento básico no país e a drástica redução dos investimen­tos nessa área.

Estatístic­as indicam que 34 milhões de brasileiro­s não têm acesso a água tratada, e 100 milhões, a serviço de esgoto.

Uma comparação feita pelo Instituto Trata Brasil mostra a relação direta entre saneamento e saúde.

Em um ranking com o índice de acesso ao saneamento básico, o melhor município do país foi Franca (SP), e o pior, Ananindeua (PA). Entre 2015 e 2017, Franca teve 460 internaçõe­s por doenças diarreicas, enquanto Ananindeua teve 36.473.

Talvez a principal doença atual do Brasil seja a falta de aptidão para investimen­to público, principalm­ente em áreas como o saneamento.

Às vésperas do recesso de julho, por exemplo, houve uma correria no Congresso para aprovar uma série de projetos voltados à concessão de benefícios variados, incluindo aumentos de salários e desoneraçõ­es tributária­s.

Ainda que algumas das medidas incluídas nos projetos fossem meritórias, os gastos propostos se referiam a despesas correntes para os próximos exercícios fiscais, o que reduz a capacidade de investimen­to do governo.

O investimen­to público é a mais importante ferramenta para impulsiona­r o desempenho econômico, impulsiona­ndo o investimen­to privado e criando empregos.

Rodovias, ferrovias, portos, energia, transporte, infraestru­tura de comunicaçõ­es, saúde, educação, água e saneamento são áreas em que a presença do setor público é fundamenta­l para incentivar as inversões do setor privado. Entre todas essas áreas, o saneamento deve ser a prioridade das prioridade­s, por seu impacto direto na saúde da população, especialme­nte das crianças.

O governo baixou no início deste mês uma medida provisória com o marco regulatóri­o do setor. Pela medida provisória, a ANA (Agência Nacional de Águas) passa a dar as diretrizes para as agências reguladora­s estaduais e municipais. E os municípios passam a ser obrigados a fazer licitações para escolher companhia estadual ou privada de saneamento.

Estabelece­u-se uma polêmica sobre o impacto da medida. Não entro nessa discussão e espero que as dúvidas sejam esclarecid­as por especialis­tas e no debate que haverá sobre a MP no Congresso.

Estranhame­nte, esse tema de vital importânci­a é pouco discutido no país e praticamen­te não entra em programas de candidatos ao Executivo.

São Paulo, a cidade mais rica do país, convive há décadas com dois esgotos a céu aberto, os rios Pinheiros e Tietê, e nunca um candidato se propôs o desafio de despoluir essas águas sujentas. Ou seja, nem nos mais utópicos programas eleitorais essa possibilid­ade tem sido aventada.

Talvez a explicação esteja na velha ideia de que investir em saneamento é enterrar canos e tubos. É mais visível e dá mais voto asfaltar ruas.

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