Sonda acha água líquida em Marte, em lago de 20 km
Mesmo semelhante ao que se vê na Terra, ainda é incerta a presença de vida, devido à dimensão de sais dissolvidos
A sonda europeia Mars Express achou evidências de um lago de 20 km de largura, com água em estado líquido, sob calota polar em Marte. É o equivalente marciano dos lagos existentes sob o gelo da Antártida.
O local é potencialmente habitável, mas os cientistas são cautelosos a respeito da possibilidade.
Marte e Terra acabaram de ficar um pouco mais parecidos. Dados da sonda europeia Mars Express revelaram a existência de um lago subglacial —ou seja, um corpo d’água sob uma capa de gelo— na calota polar Sul do planeta vermelho.
Aumentam, com isso, as chances de que se encontrem ao menos formas biológicas simples habitando ainda hoje o planeta vermelho.
Sabe-se que Marte já foi bem mais hospitaleiro à vida, mas que entre 4 bilhões e 3 bilhões de anos atrás perdeu a maior parte de sua atmosfera, se resfriou e ressecou, virando o mundo hostil que é hoje.
Se a vida surgiu em algum ponto do passado marciano, é possível que alguns organismos tenham evoluído para habitar lagos subglaciais. Poderiam, assim, ainda estar lá.
Aqui na Terra, mesmo quando esses corpos d’água estão selados do contato da atmosfera por muitos milhões de anos (como é o caso do famoso lago Vostok, no continente antártico), ainda assim eles estão cheios de vida.
A essa altura é difícil especular algo sobre o assunto. O corpo d’água detectado, com seus 20 km de largura, é uma versão mais extrema (mais gelada e mais salgada) dos lagos subglaciais existentes na Terra, em lugares como a Antártida e a Groenlândia.
Seja como for, essa promete ser apenas a primeira descoberta do tipo em Marte.
Os pesquisadores liderados por Roberto Orosei, do Instituto Nacional de Astrofísica da Itália, em Bolonha, responsáveis pelo achado, apostam que outros lagos do tipo devem existir no planeta vermelho, e estão apenas esperando serem achados.
“A notícia de que há bolsões de água líquida sob a calota polar marciana é empolgante”, disse à Folha o astrobiólogo Douglas Galante, pesquisador do LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrontron), em Campinas, que não participou da descoberta.
“A hidrosfera marciana se mostra cada vez mais abundante”, pontua. “É só questão de olharmos com cuidado mesmo.”
A descoberta foi feita com dados colhidos pela sonda europeia Mars Express. Um dos instrumentos embarcados nela é conhecido pela sigla Marsis. Trata-se de um sofisticado radar projetado por italianos e americanos, capaz de sondar o que há no subsolo do planeta vermelho.
A técnica é bastante conhecida aqui na Terra, e pesquisadores fazem todo tipo de observação com satélites para descobrir coisas no subsolo, desde lagos sob a calota polar antártica até petróleo.
Não é difícil entender como funciona. O satélite em órbita manda pulsos eletromagnéticos (em frequências de rádio) na direção do solo.
A superfície, naturalmente, reflete boa parte deles de volta para o espaço, onde são captados pelo próprio satélite que os originou. O tempo de viagem (ida e volta) do pulso indica exatamente a distância entre o satélite e o chão.
Contudo, nem tudo é refletido da superfície. Boa parte do pulso original consegue penetrar mais profundamente, e vai ser refletida somente por camadas mais profundas do subsolo.
O tempo que cada um dos ecos leva para voltar até o satélite, além de sua intensidade, revela a estrutura nos primeiros quilômetros de profundidade do planeta. É como obter uma radiografia de uma faixa de terreno.
A Mars Express está na órbita de Marte desde 2003, mas o Marsis, que para funcionar exigia a abertura de duas antenas de 20 metros de comprimento e uma de 7 metros, só começou a operar em 2005.
Os dados que permitiram a descoberta foram colhidos pela espaçonave entre maio de 2012 e dezembro de 2015 —um total de 29 “perfis” de radar de uma região de cerca de 200 km de extensão em Planum Australe (o “plano austral”).
Numa área centrada nas coordenadas 193° Leste, 81° Sul (sim, a apenas 9 graus do pólo geográfico Sul marciano), o Marsis detectou um reflexo brilhante do radar vindo de uma profundidade de cerca de 1,5 km. Um sinal bastante familiar a quem já fez sondagens desse tipo na Antártida —um lago sob uma espessa camada de gelo, em plena calota polar Sul marciana.
A julgar pelos dados, o corpo de água parecia ter cerca de 20 km de largura e pelo menos 1 metro de espessura (a profundidade é incerta, uma vez que o radar não consegue ir muito além, pois a água ab- sorve o sinal todo).
Essa detecção era o primeiro passo para mostrar que, a exemplo da Terra, Marte também tem lagos subglaciais. Mas não seria o último.
O que parece óbvio na Terra deve ser tratado como duvidoso em Marte, por uma razão muito simples: não é tão fácil enviar alguém até lá, humano ou robô, para confirmar cada descoberta.
E, bem ou mal, estamos falando de outro planeta, de forma que os cientistas que se arriscam a proclamar descobertas precisam avaliar à exaustão os dados e suas conclusões para se certificarem de que não há explicações alternativas escapando entre os dedos.
Boa parte do trabalho da equipe de Orosei consistiu em demonstrar que provavelmente o sinal em Marte é resultado do mesmo fenômeno que produz o mesmo sinal aqui.
Os detalhes técnicos saem na edição desta semana da revista Science e envolvem explicar como seria possível essa água estar em estado líquido. O que não é nada fácil.
O principal problema é que as regiões polares marcianas são ainda mais frias que as terrestres, de forma que é inviável que a água marciana detectada esteja acima de 0°C. Deve estar muito mais gelada.
Uma pista para a resposta está em nossos oceanos. Neles, a presença de sais diluídos na água quebra um galho, e a água não congela a 0°C, e sim a -2° C. O caso de Marte teria de ser bem mais extremo.
“Os dados do radar nos dizem que esta água deve conter uma grande quantidade de sais”, diz Orosei. “Porque o gelo acima dela é muito transparente [ao radar], e isso não seria possível se ele estivesse muito quente, muito perto do ponto de derretimento.”
Os cientistas estimam que a água em contato com o gelo deve estar a pelo menos -10°C —Orosei fala em -30°C. E o limite extremo para redução do ponto de congelamento da água pela dissolução de sais é de cerca de -60°C.
A aposta razoável é que haja uma grande presença de percloratos (substâncias já detectadas em solo na região polar sul de Marte, pela sonda Phoenix) diluídos na água, reduzindo seu ponto de congelamento de maneira extrema. “Não é um ambiente muito confortável para a vida”, diz Orosei.
“O problema nessa história é o perclorato”, diz Galante, do LNLS. “Água com perclorato não parece legal para microrganismos terrestres. Ou, pelo menos, era o que achávamos. ”
Galante cita dois trabalhos recentes sobre espécies de microrganismos capazes de lidar com concentrações de perclorato compatíveis com as encontradas em Marte.
Ou seja, a resposta provisória que temos sobre se poderia ou não haver vida em um ambiente assim é um intrigante “talvez”.
Infelizmente, ainda está além das tecnologias atuais das agências espaciais enviar uma sonda capaz de perfurar 1,5 km de gelo para explorar um lago marciano como esse. Mas o futuro transborda possibilidades.
“Esta água deve conter grande quantidade de sais. Não é um ambiente confortável para a vida Roberto Orosei cientista do Instituto Nacional de Astrofísica da Itália