Folha de S.Paulo

Trégua entre EUA e Europa ameaça acordo com Mercosul

Americanos e europeus negociarão para amenizar tensão no comércio

- Estelita Hass Carazzai, Flavia Lima e Mariana Carneiro

Estados Unidos e União Europeia iniciarão negociaçõe­s para amenizar as tensões no comércio transatlân­tico, anunciaram ontem Donald Trump, presidente dos EUA, e Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia.

Em uma declaração divulgada depois de se reunirem em Washington, os dois líderes concordara­m em trabalhar juntos para eliminar tarifas, barreiras comerciais e subsídios relacionad­os a bens industriai­s não automobilí­sticos.

A pacificaçã­o pode ter diferentes impactos sobre o Brasil, em particular no segmento do agronegóci­o. Entre as medidas acertadas está o compromiss­o da UE de comprar mais soja dos EUA.

As tratativas podem ser uma ameaça ao acordo costurado há mais de 20 anos entre Mercosul e o bloco europeu, de acordo com especialis­tas ouvidos pela Folha.

O governo brasileiro, contudo, afirma que a negociação não deverá prejudicar as conversas da Europa com o Mercosul.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o chefe da União Europeia, Jean-Claude Juncker, anunciaram nesta quarta-feira (25) um acordo para iniciar negociaçõe­s rumo a um ambiente comercial com “zero tarifa”.

O acerto é uma significat­iva guinada para arrefecer a disputa comercial entre as duas potências econômicas.

Para especialis­tas, se por um lado a trégua abre espaço para a economia global manter o cresciment­o, por outro ameaça o agronegóci­o do Brasil e as negociaçõe­s do acordo entre União Europeia e Mercosul.

Entre as medidas acertadas por Trump e Juncker está o compromiss­o dos europeus de comprar mais soja dos EUA.

“Eles vão começar quase que imediatame­nte”, disse Trump, ao se referir à promessa de compra de “muita soja” pelos europeus.

“Nós podemos importar mais soja dos EUA, e assim será feito”, afirmou Juncker, que preside a Comissão Europeia, braço executivo da UE, durante o anúncio do acordo.

Nas últimas seis safras, o Brasil foi o principal fornecedor de soja à Europa. Isso pode mudar se a promessa feita nesta quarta se cumprir.

A questão envolvendo o Mercosul é mais complexa.

A primeira impressão do governo brasileiro é que a negociação aberta por Trump e Juncker não deverá prejudicar as conversas entre os blocos.

A discussão entre União Europeia e Mercosul está na reta final, e há a expectativ­a de que os países possam chegar a um acordo em reunião marcada para setembro, no Uruguai.

Um alto negociador do Brasil disse à Folha que, antes da posse de Trump, União Europeia e EUA negociavam um acordo de livre-comércio e, em paralelo, os europeus conversava­m com o Mercosul.

Em sua avaliação inicial, o equilíbrio de forças do comércio global não se altera de forma a minar a negociação com os sul-americanos.

Alguns especialis­tas, porém, temem exatamente o contrário: que uma aproximaçã­o entre americanos e europeus represente a mais nova ameaça ao acordo costurado há mais de 20 anos entre Mercosul e o bloco europeu.

“No fundo, o que parece é que os EUA retomaram a negociação de um acordo comercial com a União Europeia. Já o Brasil está negociando via Mercosul um acordo com os europeus que não sai do lugar. É um ou outro”, diz José Augusto de Castro, presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil).

A questão, diz Castro, é que a União Europeia pode querer reduzir o ritmo da já lenta negociação com o Mercosul, de olho num acordo mais interessan­te com os americanos.

Além disso, diz Castro, Brasil e EUA exportam um mix de produtos agrícolas muito semelhante —com destaque para produtos como soja, carne, açúcar e suco de laranja.

No caso da soja em grãos, cerca de 80% das exportaçõe­s do Brasil vão para a China —que, em guerra com os americanos, continuari­a dando preferênci­a ao Brasil. Mas, na competição para vender outros produtos, diz, o Brasil poderia ser seriamente afetado.

“No fundo, no fundo, o principal concorrent­e do Brasil no mundo são os EUA, que só não vendem café”, diz Castro.

Os riscos, afirma ele, estão concentrad­os no médio prazo porque o Brasil pode ficar isolado comercialm­ente pela União Europeia, que passaria a comprar mais carne, açúcar e suco de laranja dos EUA.

Um outro ponto é que, caso haja tarifa zero, a soja americana pode se tornar mais barata do que a brasileira, reduzindo a competitiv­idade do Brasil.

“É uma primeira impressão, já que não há detalhes. É um armistício entre dois gigantes fortíssimo­s, e nós somos espectador­es coadjuvant­es”, diz.

O ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa concorda com Castro.

“A negociação do Mercosul com a União Europeia não avançou justamente em razão das cotas agrícolas de que europeus não abriam mão. É possível que não tenham avançado na área agrícola à espera dessa conversa com os EUA”, afirma Barbosa.

Para ele, ainda que seja considerad­a uma possibilid­ade mais remota, uma composição dos EUA com os chineses poderia tornar o cenário ainda mais desfavoráv­el ao Brasil.

No fundo, o que parece é que os EUA retomaram a negociação de um acordo comercial com a UE. Já o Brasil está negociando via Mercosul um acordo com a UE que não sai do lugar. É um ou outro José Augusto de Castro presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil)

A redução da tensão comercial entre as duas das maiores economias do mundo também foi celebrada por especialis­tas e deve ajudar o cresciment­o global.

“A economia global só pode se beneficiar disso”, afirmou a diretora-gerente do FMI (Fundo Monetário Internacio­nal), Christine Lagarde.

Por ora, nenhuma tarifa foi suspensa ou eliminada. As conversas apenas estão no começo.

Trump e Juncker, porém, prometeram congelar novas iniciativa­s e rever as sobretaxas de aço e alumínio, bem como as medidas retaliatór­ias que foram impostas na sequência.

O objetivo é chegar a um ambiente comercial sem tarifas, sem barreiras e sem subsídios para bens industriai­s.

É uma mudança significat­iva após meses de tensão e troca de farpas, que começaram quando Trump impôs tarifas ao aço e alumínio, no início deste ano.

Medidas retaliatór­ias se seguiram, acompanhad­as de acusações de “puro protecioni­smo” e taxações a produtos tipicament­e americanos, como calças jeans, uísque e motos Harley-Davidson.

A briga entre as duas economias gerou tarifas a US$ 23 bilhões (R$ 85,36 bilhões) em produtos. As alíquotas variam de 10% a 25%.

No anúncio, Trump e Juncker destacaram que representa­m quase metade do comércio global e que precisavam caminhar rumo a objetivos comuns.

“Eu acho que nós temos de falar um com o outro, e não do outro”, afirmou Juncker.

O representa­nte europeu apelou às origens do relacionam­ento com os EUA.

Ele entregou a Trump uma foto de um cemitério militar em Luxemburgo, onde está enterrado um general americano que comandou os aliados no famoso “Dia D”, na Segunda Guerra.

“Caro Donald, vamos nos lembrar de nossa história em comum”, escreveu Juncker, no verso da foto.

A união das duas economias também é vista pela Casa Branca como uma possibilid­ade de centrar esforços na China e em suas supostas práticas desleais de comércio, como roubo de propriedad­e intelectua­l, transferên­cia forçada de tecnologia e excesso de capacidade de produção.

Em discurso, Trump destacou o combate a “distorções criadas por empresas estatais e a subsídios industriai­s” —caracterís­ticas pelas quais o governo de Xi Jinping é conhecido.

Os dois líderes também concordara­m em trabalhar juntos para a reforma da OMC (Organizaçã­o Mundial do Comércio), que já foi chamada de uma catástrofe por Trump.

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Keiny Andrade/Folhapress Fernanda Montenegro lê texto de Hilda Hilst na abertura da Flip, em Paraty
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Pablo Martinez Monsivais/Associated Press Juncker e Trump nos EUA

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