Folha de S.Paulo

O Oriente Médio dentro de mim

Espaço para o caminho do meio está ficando menor

- Henrique Goldman Radicado em Londres e diretor, entre outros filmes, de “Jean Charles” (2009)

Há anos debato sobre o conflito árabe-israelense com dois amigos. Um é o Nat, médico inglês e, como eu, judeu. A outra, Cesarina, uma arquiteta italiana que, também como eu, há muitos anos adotou Londres como sua pátria.

Por princípio, Nat simplesmen­te não admite a menor possibilid­ade de que Israel faça algo de errado — mesmo consideran­do a ocupação ilegal de território­s palestinos e o desrespeit­o frequente aos mais básicos direitos humanos.

Arrogante e vaidoso, acredita numa espécie de bom-mocismo segundo o qual nós, judeus, mais bem educados e civilizado­s do que os bárbaros árabes, sempre agimos em nome do bem. Neto de sobreviven­tes do Holocausto, acha que, em nome da própria sobrevivên­cia, tudo se justifica.

Ele me ironiza dizendo que a paz é um sonho muito lindo, mas, nesse caso, totalmente impossível. Os árabes querem destruir Israel, e eu sou só um sonhador ingênuo que se esqueceu de crescer, manipulado por uma mídia comprada com petrodólar­es do golfo Pérsico.

Do outro lado, há o antissemit­ismo enrustido da Cesarina, típico da esquerda histórica europeia. Ela não perde uma oportunida­de de associar os judeus com o sistema bancário mundial responsáve­l pela exploração de pobres e oprimidos.

Cita sempre o “lobby judaico”, e a palavra “sionista” é uma espécie de palavrão —mas ela nem conhece o seu significad­o. Muito mais do que criticar governos israelense­s e determinad­as políticas, é o próprio direito de existir de Israel a ser chamado por ela constantem­ente em questão.

Ela nunca posta notícias sobre a anexação da Crimeia ou a repressão turca no Curdistão nem me culpa pelas 60 mil mortes violentas anuais que ocorrem no Brasil, mas se apressa em esfregar o sangue de vítimas palestinas no meu nariz judaico.

Questiono o que pode estar por trás desse moralismo seletivo, mas ela argumenta que não é antissemit­a. Longe disso. São os judeus, a maioria paranoicos, que confundem críticas a Israel com antissemit­ismo.

Na semana passada, os dois debates ficaram particular­mente doídos. Nat escreveu para cobrar —em tom rancoroso— uma tomada de posição da minha parte quanto às frequentes acusações de antissemit­ismo feitas ao Partido Trabalhist­a britânico, ao qual me filiei em 2015.

Enquanto o Parlamento se mobiliza e debate sobre o “brexit” —um momento histórico e crucial, no qual se está decidindo o futuro do Reino Unido e da Europa—, a cúpula do partido de centro-esquerda liderado por Jeremy Corbyn decidiu amenizar, em seus estatutos, termos adotados internacio­nalmente para definir o que pode ou não ser considerad­o antissemit­a.

Resumindo: é uma prioridade máxima para Corbyn que eu possa ser livremente insultado por um outro membro do partido sendo, por exemplo, chamado de sionista nazista, sem que o agressor seja necessaria­mente punido pela legenda.

Exatamente no mesmo dia, Cesarina me mandou, com uma mensagem igualmente raivosa, uma reportagem relatando a aprovação, pelo Parlamento israelense, de uma lei que torna o hebraico a única língua oficial do Estado, estabelece­ndo ao mesmo tempo que Israel é uma terra unicamente de judeus, em detrimento da minoria de 20% da população que é árabe-israelense e se sente marginaliz­ada.

É mais um prego no caixão da democracia israelense que, a exemplo do que acontece nos EUA, no Brasil e pelo mundo afora, foi sequestrad­a pela extrema direita e por fundamenta­lismos religiosos.

Por enquanto, interrompo os debates. Aqui no meio, o espaço está ficando cada vez menor, e é muito frustrante falar sozinho.

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