Folha de S.Paulo

Manuscrito­s Notáveis

(Meetings with Remarkable Manuscript­s). Christophe­r de Hamel. Tradução: Paulo Geiger. Ed. Companhia das Letras. R$ 109,90 (680 págs.)

- Zeca Camargo

Se você está lendo isto é porque tem, no mínimo, uma relação de interesse com os livros. Talvez até de carinho. Com um pouco de sorte, paixão. Mas dificilmen­te você vai superar a devoção que Christophe­r de Hamel demonstra nos relatos de alguns dos livros antigos mais importante­s da história, em “Manuscrito­s Notáveis”.

São 12 volumes que o autor compartilh­a com a gente não apenas nas descrições minuciosas dos detalhes dessas páginas iluminadas, mas também na biografia dessas obras e até —com uma riqueza de detalhes tão grande quanto a que dedica às páginas que encontra pelo mundo— das biblioteca­s onde esses tesouros estão guardados.

O adjetivo “iluminadas” não é nenhuma referência esotérica. Ele é simplesmen­te uma palavra precisa para descrever as riquíssima­s ilustraçõe­s que decoram esses edições de séculos atrás —uma vez que, bem antes da invenção da imprensa, não havia maneira mais prática de fazer o saber circular do que com esses manuscrito­s.

E são essas ilustraçõe­s que primeiro deslumbram que folheia “Manuscrito­s Notáveis”. Os olhos ficam perdidos, por exemplo, nos labirintos das linhas do “Livro de Kells” —a preciosida­de maior do Trinity College, em Dublin. Ou seduzidos pelo traço forte das imagens do Saltério de Copenhague. Ou pelas cenas de batalha do Semideus de Visconti.

Porém desse apelo visual, somos transporta­dos, pelo texto de Hamel, para os bastidores de cada exemplar —e aí o que nos fascina é a combinação entre a beleza e a curiosidad­es deles.

Como no caso do estupendo objeto conhecido por Horas de Joana de Navarra. A dona do livro, órfã aos 4 anos de Luís 10, não chegou ao trono sem uma série de percalços —e, justamente por conta dessa trajetória mirabolant­e, é delicioso imaginar a rainha com suas Horas ao colo buscando um pouco de paz.

Nem todo livro escolhido por Hamel é sagrado. O belíssimo (e divertidís­simo) Hugo Pictor, que repousa da Biblioteca Bodleiana de Oxford, é uma coleção de adivinhas e enigmas. Uma raridade fascinante, que o autor se delicia ao descrever.

Nesse seu delírio paleógrafo —referente aos estudo de livros antigos—, Hamel pode ser detalhista a ponto de nos fazer desistir de um parágrafo. Será que precisamos mesmo de um paralelo entre o gato tocando uma viola no Saltério de Copenhague e a reação do felino que mora na casa do autor quando ouviu um especialis­ta em música medieval, Armando López Valdivia, tocar?

Esses exageros, porém, são quase inofensivo­s diante das descoberta­s maravilhos­as que ele nos proporcion­a. Como a inspiração para a cantata “Carmina Burana”, de Carl Orff.

O compositor nunca chegou a ver o original do século 13, em Munique: fez sua obra inspirado numa edição do final do século 19. Mas nem por isso deixou de plantar esses versos no cânone da música universal.

Exaustivo como é, “Manuscrito­s Notáveis” ainda deixa perguntas sem repostas. “Carmina Burana” contém versos de Abelardo para Heloísa? Aquele monge de cabelo verde é mesmo Hugo Pictor?

Longe de serem vistos como lacunas, mistérios como esses só nos aproximam ainda mais do poder que esses livros e suas histórias exercem sobre nós.

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