Folha de S.Paulo

Explosão de sabores indianos

Como um lanche no meio da noite inspirou um livro de receitas

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

Essa história começa em 2004, em Nova Déli, na casa do meu amigo indiano Varunesh Tuli. Eu estava lá hospedado numa das escalas da minha primeira volta ao mundo, trabalhand­o em contato com o Brasil.

O fuso horário me castigava, obrigando-me a ficar acordado até altas horas enviando o material que eu havia gravado para o Rio de Janeiro.

Numa dessas madrugadas, olhando na tela do laptop os minutos e segundos que faltavam para que a transmissã­o fosse concluída, como se o poder da minha visão pudesse adiantar o processo, escuto portas batendo pelo corredor. Quando viro para trás, vejo a mãe do meu amigo, apontando sua mão frágil na minha direção, dizendo: “You must eat” (você precisa comer).

O que eu mais precisava mesmo àquela altura era dormir, pois vinha viajando e trabalhand­o num ritmo frenético. De comida, até que eu estava bem: a própria casa que me hospedava era bem servida e, sempre acompanhad­o por Tuli, eu provava tudo que podia nas ruas. Sua experiênci­a de quem cresceu degustando aquilo tudo me orientava entre as delícias e os perigos — coisas que, segundo ele, seriam fatais para a digestão de um estrangeir­o.

Mas havia uma urgência na voz da minha anfitriã que indicava que eu não deveria recusar sua proposta. A insônia tinha chegado para ela com a idade, e um hóspede dando sopa às 3h era uma oportunida­de que ela não podia deixar passar. Quando vi, estava na cozinha mexendo com as panelas.

Nada de muito sofisticad­o: receitas básicas indianas que ela fazia desde que Tuli era pequeno —e que ensinou para seu filho. De lá para cá, na casa dele em São Paulo, já experiment­ei altos banquetes preparados por Tuli, com pratos tão maravilhos­os que a única maneira de parar de comê-los é ir embora com a mesa ainda posta.

Foi num desses jantares, no final 2015, que Tuli sugeriu: por que não fazíamos um livro de comida indiana? Ele entraria com as receitas e eu contaria histórias daquilo que provei na Índia. Fiquei seduzido pela ideia e, em abril de 2016, lá fomos nós de novo para o seu país, desta vez para registrar a culinária de lá, dos ingredient­es ao que se serve à mesa.

Foi uma farra! Das paratas com os dals mais variados aos kebabs do bairro muçulmano de capital; do biscoito de gergelim na ponte de Rishkesh ao cardamomo mais perfumado do mercado de especiaria­s em Old Delhi; da samosa de beira de estrada em Haridwar à feijoada de Goa —eu não tinha limites. Talvez uma ou outra fritura de rua que Tuli ainda insistia que afetaria meu “frágil” intestino. De resto provei de tudo. E fui escrevendo.

O resultado disso, o livro “Índia - Sabores e Sensações” (Companhia das Letras), está sendo lançado agora —nesta quinta (26), na verdade, na Casa Folha, dentro da programaçã­o da Flip 2018, em Paraty.

Ao lado de Tuli, vou contar histórias perfumadas e deliciosas, viajar por essa “memória do paladar”, que, espero, inspire não só quem vai estar lá para nos ouvir mas também aqueles que quiserem experiment­ar as receitas do livro.

A mãe do Tuli já não está mais conosco, mas seus quitutes vivem —e explodem de sabor nas páginas que juntamos. E espero que o seu prazer ao experiment­ar tudo isso seja tão ou maior do que o que eu senti naquela madrugada quente em Nova Déli.

Esse relato está no livro, com mais detalhes, além de outras aventuras saborosas: “pani puri no Ganges”, a galeria das pimentas, o aguardente de caju, o refrigeran­te da bola de gude.

Afinal, eu gosto de um “causo”. Posso até parecer meio indiano, virtualmen­te todo mundo lá iniciava uma conversa comigo em hindi, assumindo que eu era local. Mas por trás dessa cara de Bollywood eu não me esqueço que minha alma é mineira.

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Maíra Mendes

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