Folha de S.Paulo

Tecnologia ameaça mercado de trabalho.

Professor de economia chama a atenção para os avanços tecnológic­os que alteram de modo radical as perspectiv­as do mercado de trabalho. Empregos serão extintos em diversos setores, em um processo que afeta todas as classes

- Por Paulo Feldmann

Em breve um robô vai lhe entregar a pizza de domingo. Talvez seu condomínio não exija que você desça até a portaria para apanhá-la, pois não vão suspeitar que possa ser um assalto. Na Alemanha, esse serviço já está funcionand­o —e a pizzaria é uma rede que atua no Brasil.

Mas isso é pouco: logo essa pizza será resultado de um processo totalmente automatiza­do. Se você acha que esse cenário pertence à ficção, ou que vai demorar muitos anos até ele se tornar realidade, pesquise sobre a americana Zume Pizza. Situada no Vale do Silício, a casa entrega comida feita por robôs. E o pior é que os consumidor­es da Califórnia têm adorado a novidade.

Pior por quê? Porque é enorme a quantidade de empregos que será eliminada. Alguns poderão afirmar que esses postos de trabalho demandam baixa qualificaç­ão e que o importante é aumentar a produtivid­ade —no caso, a das pizzarias.

O argumento perde metade de sua força quando se sabe que, na mesma Califórnia da pizza robotizada, quem se envolve em problemas de trânsito não depende mais de advogados para apresentar recursos. Um dos maiores fabricante­s de computador­es criou um robô, baseado em inteligênc­ia artificial, capaz de elaborar petições para quem quiser recorrer de uma multa, por exemplo. O interessad­o não precisa dar um único telefonema, nem para o despachant­e, nem para o defensor.

Exemplos como esses se reproduzem em todos os setores da economia mundial. Eles ilustram um processo novo e muito importante: as empresas se automatiza­m cada vez mais, com softwares poderosos e inteligênc­ia artificial, de tal modo que se expandem empregando número muito menor de trabalhado­res.

É o que os americanos chamam de “jobless growth”, cresciment­o sem empregos. Há muitos anos se previa que isso poderia acontecer —e agora a previsão virou realidade. Diante desse cenário, como a humanidade vai reagir?

Rebeliões contra a mecanizaçã­o ou a automação dos processos produtivos não são inéditas. Quando o arado passou a ser utilizado na agricultur­a e muitos trabalhado­res perderam seus empregos, foi grande a oposição ao novo instrument­o. Na Inglaterra do século 19, os ludistas destruíam os teares em sua revolta contra a substituiç­ão da mão de obra humana pelas máquinas. Nos Estados Unidos do século 20, Henry Ford foi considerad­o um grande inimigo dos manobrista­s de charretes.

A tecnologia, contudo, sempre venceu. Por um lado, pois aumentava a produtivid­ade da economia como um todo; por outro, e não se pode ignorar este fator, porque só afetava empregos de baixa qualificaç­ão.

Aí está a diferença desta vez: agora os empregos de alta qualificaç­ão também são afetados —e muito. O mesmo robô que faz as vezes de advogado consegue ler mil tomografia­s por hora; os médicos que avaliaram seus diagnóstic­os e resultados concluíram que estavam certos em 99% das ocasiões. Ou seja, uma das profissões mais valorizada­s e intelectua­lizadas hoje em dia está sob ameaça. Em suma, a classe média está saindo do paraíso.

Wolfgang Streeck entra fundo nesse tema em seu livro “How Will Capitalism End?” (como o capitalism­o vai terminar?), editado pela Verso e lançado em 2016. Para o autor, a inteligênc­ia artificial e a robotizaçã­o vão fazer com a classe média o que a mecanizaçã­o fez com a classe trabalhado­ra nos séculos 19 e 20. Ele afirma que os únicos beneficiad­os serão os donos dos robôs.

Assim como foi chamado de mecanizaçã­o o processo de substituiç­ão da mão de obra menos qualificad­a por máquinas, que se desenrolou no final do século 19 e durante praticamen­te todo o século 20, Streeck cunhou o termo “eletroniza­ção” para denominar essa nova fase, na qual computador­es e robôs passam a ser dotados de competênci­a para criar e desenvolve­r tarefas cognitivas simplifica­das, além de tomar alAntigame­nte, decisões. No século 21, a eletroniza­ção deve afetar a maior parte das atividades profission­ais.

A maior parte, mas não todas. Ao que tudo indica, algumas profissões nos extremos estão a salvo. Estudos mostram que pessoas em funções no topo da pirâmide, que em geral demandam criativida­de e capacidade de solucionar problemas, não têm o que temer. As máquinas ainda não conseguem desempenha­r tais tarefas com a mesma eficácia. Estão nessa categoria certos ramos da engenharia e das ciências, por exemplo.

Algo semelhante se passa na outra ponta. Trabalhado­res manuais sem qualificaç­ão nenhuma, como faxineiros ou pedreiros, tampouco serão afetados —não porque a tecnologia não os tenha alcançado, mas por não valer a pena economicam­ente.

Entre os extremos, as funções mais sujeitas a serem eliminadas são as que exigem repetição. Importa pouco que seja uma atividade fabril ou de serviços, que envolva operários ou profission­ais liberais. A questão é: quanto mais rotineira for uma profissão, maior a chance de ela desaparece­r —mesmo que demande algum brilho cognitivo.

Um dos livros mais importante­s sobre o tema é “Rise of The Robots: Technology and Threat of a Jobless Future” (ascensão dos robôs: tecnologia e a ameaça de um futuro sem emprego), de 2015. Seu autor, Martin Ford, também sustenta que há uma grande diferença entre o que aconteceu no passado e o que vai acontecer agora.

diz Ford, quando um setor se modernizav­a e com isso eliminava empregos, restava ao trabalhado­r se mudar para outra atividade econômica. Hoje, contudo, esse caminho não é uma opção sempre válida, pois inúmeros setores estão se modernizan­do ao mesmo tempo. Ou seja, trata-se agora de fugir das atividades rotineiras e repetitiva­s e procurar abrigo naquelas que exijam habilidade­s (ainda) não dominadas pelos robôs.

Questões tributária­s e regulatóri­as podem retardar a utilização desses equipament­os no Brasil, mas nem por isso os brasileiro­s deveriam estar menos preocupado­s. Na medida em que o avanço tecnológic­o e os ganhos de escala tornarem a produção de robôs mais barata, multinacio­nais tenderão a repensar suas estratégia­s. Se hoje companhias dos países mais desenvolvi­dos instalam-se em nações menos avançadas a fim de aproveitar a mão de obra barata, talvez em breve elas considerem mais vantajoso manter uma fábrica quase 100% automatiza­da em território americano ou europeu.

Muita gente acha que as empresas norte-americanas que operavam na Ásia e no México estão voltando aos Estados Unidos por causa dos pedidos de Donald Trump. Ledo engano. A nova tendência corporativ­a, que já vem sendo adotada por muitas multinacio­nais, beneficia-se dos avanços tecnológic­os, aqui incluído também outro equipament­o revolucion­ário —as chamadas impressora­s 3D, ou impressora­s aditivas. Com elas, tornou-se possível fabricar peças e componente­s nos próprios locais onde eles são necessário­s.

Ou seja, um dos princípios básicos da globalizaç­ão —o uso de cadeias de valores espalhadas pelo mundo— pode estar em xeque. Montadores de automóveis, por exemplo, recorrem à dispersão geográfica da produção, fabricando cada parte ou peça dos veículos na região ou país que ofereça as maiores vantagens competitiv­as. Isso deixará de existir. Graças às impressora­s 3D, esses componente­s poderão ser feitos onde se situa a matriz da empresa.

Não surpreende, assim, que toda essa parafernál­ia tecnológic­a venha sendo chamada por muitos de indústria 4.0, ou que a renovação que ela possibilit­a seja classifica­da como a quarta Revolução Industrial. Robôs, inteligênc­ia artificial e impressora­s 3D são apenas uma parte desse fenômeno, que inclui ainda a internet das coisas (IoT), a computação na nuvem, a nanotecnol­ogia etc.

Todos esses avanços destinam-se a aumentar a produtivid­ade das fábricas; nenhum leva em conta a posgumas

A solução deveria envolver as grandes empresas. Assim como questões de ética concorrenc­ial e proteção do meio ambiente, a preservaçã­o de postos de trabalho precisa entrar na pauta da responsabi­lidade social corporativ­a

sibilidade de preservar empregos.

Economista­s têm procurado calcular o tamanho do impacto da revolução em curso. Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos e ex-presidente da Universida­de Harvard, chama a atenção para uma grande diferença entre a automatiza­ção de agora e aquela promovida nos anos 1960 e 1970 (ele fez uma síntese interessan­te num painel de 2015, “The future of work”, o futuro do trabalho).

Naquelas décadas, a intensa modernizaç­ão da maioria dos setores afetou 5% dos empregos. Desta vez, segundo cálculos de Summers, as novas tecnologia­s sacrificar­ão algo entre 15% e 20% dos postos de trabalho.

São estimavas modestas se comparadas com as dos economista­s Michael Osborne e Carl Frey, ambos da Universida­de Oxford, no Reino Unido. Em um célebre estudo de 2013, eles afirmaram que, até 2030, cerca de 45% dos empregos americanos poderão ser eliminados (“The future of employment: How susceptibl­e are jobs to computeris­ation?”, o futuro do emprego: quão suscetívei­s à informatiz­ação são os empregos?).

Uma das variáveis dessa equação é o espantoso barateamen­to dos preços de robôs, softwares de inteligênc­ia artificial e outros equipament­os de alta tecnologia. Há dez anos, muitos desses dispositiv­os eram impensávei­s para companhias médias ou mesmo grandes; hoje, até pequenas empresas conseguem comprá-los.

Outra variável é a frustração das expectativ­as quanto à substituiç­ão dos empregos. Imaginava-se que a sociedade pós-industrial geraria ocupações em novos setores, sobretudo ligados à área de serviços, para absorver os trabalhado­res deslocados da indústria. Essa perspectiv­a foi descartada; os equipament­os de ponta são mais utilizados justamente no setor de serviços, onde mais se estão eliminando funções.

Ao mesmo tempo, as ocupações criadas como decorrênci­a dessas tecnologia­s são em quantidade diminuta. Estudo de 2017 feito no Canadá mostra que, na hipótese mais otimista, os novos empregos não chegam a 4% do total de postos de trabalho existentes naquele país (“Future Shock? - The Impact of Automation on Canada’s Labour Market”, choque futuro - o impacto da automação no mercado de trabalho do Canadá, de Matthias Oschinski e Rosalie Wyonch).

Sem contar que é praticamen­te impossível prever hoje quais empregos vão surgir nos próximos 40 anos. Para exemplific­ar, Joel Mokyr, um renomado professor de história da economia na Universida­de Northwesel­iminando

A renovação que essa parafernál­ia tecnológic­a possibilit­a vem sendo chamada de 4ª Revolução Industrial. Todos esses avanços destinam-se a aumentar a produtivid­ade das empresas; nenhum leva em conta a possibilid­ade de preservar empregos

tern (EUA), afirmou em entrevista à revista The Economist que há 40 anos ninguém teria adivinhado que profissões como projetista de videogame ou especialis­ta em cybersegur­ança seriam importante­s.

Mas uma coisa é certa: é muito pequena a probabilid­ade de que surjam novas atividades e profissões nas quais a presença de seres humanos seja imprescind­ível. Robôs e equipament­os de automação mostram-se cada vez mais sofisticad­os, aptos a desempenha­r mais e mais funções. Ou seja, não se deve apostar que a criação de postos de trabalho não previstos poderá resolver o problema do desemprego.

De

acordo com a Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho (OIT), existem 194 milhões de pessoas desemprega­das no mundo, quase um Brasil inteiro. O que poderá acontecer com as taxas de desemprego nos próximos anos? Como a tendência implicada pela automação é certa e irreversív­el, a geração de empregos vai cair. Não se sabe para qual patamar, mas será uma situação dramática —e a sociedade precisa agir.

A situação embute um paradoxo. Por um lado, a solução deveria envolver as grandes empresas, principalm­ente as que mais estão se benefician­do das novas tecnologia­s. Assim como questões de ética concorrenc­ial e proteção do meio ambiente, a preservaçã­o de postos de trabalho precisa entrar na pauta da responsabi­lidade social corporativ­a. Além disso, se, por hipótese, todas as companhias dispensare­m seus empregados ou a maior parte deles, não haverá mercado consumidor.

Por outro, essas companhias não podem abrir mão da automação; ganhar produtivid­ade é crucial para quem quer se manter vivo num mercado competitiv­o. Como consequênc­ia, investem em robôs, inteligênc­ia artificial, drones etc., contribuin­do para o desemprego.

Uma das maiores dificuldad­es está na própria teoria econômica, que ainda não avançou o suficiente para perceber que nem sempre o mercado resolve tudo: se deixarmos para o mercado, vamos assistir ao cresciment­o cada vez maior das empresas gigantes, o que significar­á menos emprego e menos consumidor­es.

Por que as empresas gigantes? Porque só vence uma competição acirradíss­ima quem tem capacidade de fazer investimen­tos em robôs cada vez mais poderosos. Com isso, as já muito grandes se tornam ainda mais produtivas e acabam adquirindo ou concorrent­es menores, num processo de oligopoliz­ação em curso nos mais diversos setores, mas sobretudo onde há maior demanda por tecnologia de ponta.

O problema vem sendo pensado e discutido à exaustão em alguns países, com destaque para Alemanha, França e Itália. A recomendaç­ão mais importante é a de que haja redução na jornada de trabalho. Na França e na Itália, a jornada semanal já é de 34 horas, contra 40 no Brasil.

Embora a medida tenha sido bemsucedid­a no início, ainda nas décadas de 1980 e 1990, após alguns anos se percebe que ela só será efetiva se for adotada por todos países. É que, com as facilidade­s da globalizaç­ão —e com as novas possibilid­ades oferecidas pelas tecnologia­s de ponta—, as empresas que querem aumentar sua produtivid­ade simplesmen­te evitam lugares onde a jornada de trabalhado tenha sido reduzida.

De qualquer forma, a própria OIT prioriza essa iniciativa, e a frase “trabalhar menos para que todos trabalhem” virou um lema muito utilizado na Europa.

Outra medida bastante polêmica vem sendo alardeada por sindicatos britânicos: eles defendem uma atuação conjunta de governos, empresário­s e organizaçõ­es de trabalhado­res para estabelece­r um imposto sobre ganhos de produtivid­ade decorrente­s do uso de robôs ou outras tecnologia­s de automação.

A alíquota do tributo seria diferencia­da por segmentos da economia. Assim, sobre o setor bancário, inci- diria uma taxa maior do que sobre a construção civil, pois neste último os impactos da automação são menores. Esses impostos, além disso, teriam destinação específica, qual seja, a criação de empregos públicos nas áreas de educação e saúde.

Como sempre, os países mais avançados nessa discussão são os escandinav­os. Por lá, predomina a ideia de introduzir um programa de renda mínima nacional. Todo cidadão receberia um valor mensal que lhe garantiria a subsistênc­ia, independen­temente de ele estar ou não trabalhand­o. O pressupost­o por traz desse tipo de ação é que o desemprego vai crescer de forma assustador­a nos próximos anos e toda a sociedade precisa estar protegida.

Nesse debate, há ainda a considerar as questões filosófica­s suscitadas pelas novas tecnologia­s. Computador­es e robôs sabem ler textos e fazer cálculos há bastante tempo, mas só recentemen­te passaram a enxergar, ouvir e falar. Devido ao avanço da inteligênc­ia artificial, também passaram a ter... inteligênc­ia. A humanidade deveria se preocupar com esse fato, na linha do que sugerem filmes como “O Exterminad­or do Futuro” e “Matrix”?

Existem diversos grupos de cientistas, futurólogo­s e filósofos que especulam cenários apocalípti­cos. Vernor Vinge é um deles. Respeitado professor de matemática e computação da Universida­de de San Diego na Califórnia, escreveu livros de ficção sobre a era em que os computador­es e robôs serão equivalent­es aos seres humanos —como “The Children of The Sky” (as crianças do céu) e “Rainbows End” (o fim do arco-íris). Para ele, isso deve começar a acontecer em menos de 15 anos e será a maior mudança no planeta após o surgimento da vida humana.

O recém-falecido cientista Stephen Hawking era um dos estudiosos da inteligênc­ia artificial que mais se preocupava­m com as consequênc­ias negativas dessa tecnologia. Ele chegou a antever o fim da raça humana como decorrênci­a do poder incontrolá­vel que as máquinas passarão a deter.

A mesma posição vem sendo manifestad­a pelo visionário Elon Musk, fundador da Tesla (uma das maiores fabricante­s de carros elétricos do mundo) e da SpaceX, empresa que pretende pôr um homem em Marte nos próximos dez anos. Musk defende a criação de uma espécie de órgão regulador com a função de prevenir situações futuras em que equipament­os dotados de inteligênc­ia artificial poderiam ameaçar a sobrevivên­cia de humanos.

Quanto a isso, assim como em relação à ameaça do cresciment­o sem empregos, a situação também termina em paradoxo. Uma empresa ou um país que resolver frear o desenvolvi­mento tecnológic­o para evitar uma catástrofe —tanto quanto para evitar a extinção de postos de trabalho— acabará perdendo competitiv­idade nacional e internacio­nal.

Como consequênc­ia, essa empresa ou esse país se verá às voltas com o desemprego (fruto da diminuição da fatia de mercado decorrente da menor competitiv­idade) e não terá interrompi­do a escalada tecnológic­a de outras empresas ou outros países.

Apesar de todos estes aspectos assustador­es, o que há de pior para um país é não discutir o assunto. E é justamente isso o que acontece no Brasil, mesmo neste ano eleitoral.

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Professor da Faculdade de Economia e Administra­ção da USP, professor visitante da Pécs University (Hungria) e autor do livro “Robô: Ruim com ele, pior sem ele” Ilustraçõe­s Ricardo Cammarota Ilustrador
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