Folha de S.Paulo

A política dos homens

Ao contrário do que dizem arautos da direita, o Brasil não teve revolução de gênero

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to. É autora de “Flores, Votos e Balas”

A Flip, este ano, tem curadoria de uma mulher e homenageia outra. A coincidênc­ia é inédita num campo em que todos, todas e todes são pró-igualdade de gênero. É que, até neste reino “soft” da cultura, predominam os homens.

Mesmo em veículos pop, os colunistas sobrepujam as coleguinha­s. A desproporç­ão é maior na mídia tradiciona­l e nos “assuntos sérios”. Idem nas ciências: a USP tem mais professore­s (62,1%) do que professora­s. Quanto mais alta a hierarquia e mais valorizado o campo, maior a discrepânc­ia.

O bicho pega mesmo onde mora o poder. Tivemos uma única ministra da Fazenda. E, no mercado, 39,1% das chefias são femininas, mas com salário menor que de seus equivalent­es masculinos, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a). Piora quando as moças teimam em subir na vida: aquelas com ensino superior completo ganham 63,4% do que auferem homens de igual qualificaç­ão.

No Judiciário, a fotografia parece melhor, com senhoras nos altos postos. São exceções na modorrenta função de confirmar a regra: 62,7% da magistratu­ra é masculina, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Os partidos estão obrigados, nesta eleição, a gastar 30% do Fundo Especial de Financiame­nto de Campanha com candidatas. Como ninguém disse como se porá o guizo nestes gatos, é de supor que a política nacional seguirá com gatas pingadas.

O campo é de macho desde sempre. O voto feminino é de 1932. Dois anos depois, a Câmara teve sua desbravado­ra, mas daí até 1978, as deputadas não ultrapassa­ram 1,4% da Casa. A redemocrat­ização pouco afetou a situação: elegeram-se 26, em 1986. O número subiu lentamente, batendo em 45 em 2006 e 55 (ou 10,7%) em 2014.

No Senado, a proporção é pouco maior (16%), mas as 13 atuais têm precursora mais tardia, Eunice Michiles, empossada em 1979, por morte do titular. Os colegas a receberam com flores, esclarecen­do, ironizou a própria, que “Meu papel no Senado era ficar quietinha, me comportar como uma dama”. Suas duas sucessoras, eleitas em 1990, partilhara­m seus apertos: o Senado só inaugurou banheiro feminino em 2016.

Em 1986, estreou uma governador­a, outra vez por vacância. Pelo voto só em 1994, quando Roseana Sarney inaugurou série curta, de oito eleitas. Somando vices empossadas, foram 11 contra 122 governador­es (91,7%). Nada indica mudança este ano: até aqui são homens 84% dos que concorrem.

Os cândidos verão o lado bom: tivemos uma presidenta e mulheres pleiteiam seu posto. Mas Dilma sofreu impeachmen­t e mídia e adversário­s tomam Marina por sonhática e Manuela por meninota. Sempre a estratégia de rebaixar, por ingênuas ou desprepara­das.

Elites culturais pró-igualdade carecem de força para alterar fenômeno tão enraizado como a dominação masculina, mas constrange­m sua enunciação pública.

Partidos agora põem mulher na chapa para ficar bem na foto. Selecionam, contudo, as que sabem seu lugar. A vice de Paulo Skaf tem doutorado, mas ele a escolheu por ser “uma moça de família boa e é uma coronel suave, não tem nada de truculênci­a”. Bolsonaro tem baciadas de frases piores e hesita em aceitar Janaína Paschoal. Adepta do mesmo conservado­rismo alucinado, poderia ofuscá-lo.

Já Ciro Gomes tentou se redimir do “a função dela é dormir comigo”, mas reincidiu, chamando promotora de “filho da puta”. Ignorar o gênero de quem atacava não o inocenta. O xingamento é o mais machista dos nacionais, porque ultrapassa seu alvo para detratar como “mulher pública” aquela que o concebeu.

Longe de boquirroto, o candidato do PSDB cultua as hierarquia­s tradiciona­is, mas honra seu partido e fica no muro nesta questão. E o PT cogita varões para o lugar de Lula, sem listar Dilma, com seus 24,4% de intenção de voto na praia de Aécio.

Ao contrário do que apregoam arautos da direita, o Brasil não teve uma “revolução” de gênero. Os avanços são parcos e lentos. Tolhida a eleger um dos “que têm aquilo roxo”, a maioria da mulherada nem sabe em quem votar.

A desigualda­de de gênero é sem fronteiras. Eléonore Pourriat a retratou em “Eu Não Sou um Homem Fácil”. No filme, o mocinho bate a cabeça e acorda em sociedade de papéis invertidos: elas comandam política e economia e eles cuidam de casa e família, enquanto penam com roupa justa e depilação.

Mas isso é ficção. Fora dela, as que vão para a política sofrem para obter candidatur­a, recursos, apoios. E, se eleitas, correm os riscos de Dilma e Marielle.

O que é verdade, mas parece ficção, é a união de mulheres para realizar em agosto, no Rio, o primeiro Congresso Antifemini­sta do Brasil.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil