Folha de S.Paulo

Flip encolhe e se renova

Se de um lado o número de autores convidados diminuiu, de outro, a quantidade de casas parceiras triplicou

- Maurício Meireles

Apesar do orçamento menor e de ter menos autores convidados do que em 2017, a Festa Literária Internacio­nal de Paraty ganhou amplitude com a ajuda de robusta programaçã­o paralela. Editoras menores tiveram presença forte.

Era improvável em ano de penúria financeira —com um orçamento de R$ 5,3 milhões, o menor em 12 anos—, mas a Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty) parece enfim dar sinais de renovação de seu modelo.

É paradoxal, mas a festa literária conseguiu encolher e crescer ao mesmo tempo.

O número de autores convidados caiu de 46 para 33 do ano passado para cá; o número de mesas, de 22 para 18.

Já a programaçã­o paralela explodiu de tamanho: neste ano houve 22 casas parceiras, contra sete no ano passado. E com uma programaçã­o interessan­te, que chega mesmo a competir com a oficial.

Os selos independen­tes fizeram bem em incluir a Flip no seu roteiro de feiras —muitas delas tiram parte importante de seu sustento de eventos do tipo, como a Feira Plana e outras, mas não costumavam comparecer a Paraty.

Com a crise econômica e o atraso de pagamentos a editoras por redes de livrarias como a Cultura e a Saraiva, feiras literárias ganham ainda mais importânci­a como meio de vendas e divulgação. O público respondeu à altura, lotando esses espaços.

Essa mudança traz um problema consigo: a quantidade de eventos paralelos era inversamen­te proporcion­al ao tamanho de seus canais de divulgação. Era difícil saber tudo o que estava acontecend­o. E quando. E onde. Não havia uma página online ou informativ­o que centraliza­sse essa programaçã­o.

“Ano que vem queremos ter um aplicativo em que as casas parceiras possam fazer atualizaçõ­es até o último momento”, diz Mauro Munhoz, diretor da Casa Azul, organizaçã­o social que promove a festa.

Ainda que menor, a programaçã­o principal fluiu bem e trouxe surpresas, com momentos que lembraram antigas Flips e autores em geral entrosados.

O escritor franco-congolês Alain Mabanckou, por exemplo, era desconheci­do no Brasil e publicado pela pequena editora Malê —mas cativou o público em uma mesa bemhumorad­a, conduzida pelo escritor José Luiz Passos e o advogado Silvio Almeida.

Das revelações, ficam também o brasileiro Gustavo Pacheco, de “Alguns Humanos” (Tinta da China), a moçambican­a Isabela Figueiredo, autora de “Caderno de Memórias Coloniais” (Todavia), e a rus- sa Liudmila Petruchévs­kaia, de “Era Uma Vez Uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha” (Companhia das Letras), entre outros.

Foi uma surpresa também o debate entre a italiana de pais somalis Igiaba Scego e o poeta suíço Fabio Pusterla —durante a conversa, a intérprete que fazia a tradução simultânea se emocionou e precisou parar para se recompor.

É bom destacar ainda a mesa que reuniu Gustavo Pacheco e o veterano Sérgio Sant’Anna. Bem humorado, Sant’Anna parecia conduzir uma conversa na sala de sua casa.

A organizaçã­o do evento só divulgará o público nos próximos dias, mas a percepção era de ruas mais cheias do que nos últimos dois anos.

Se nas edições recentes a Flip chegou a se transforma­r numa festa sem festa, desta vez a vida na rua estava de volta. Ajudou o bar que a editora Todavia montou perto do cais, para onde uma pequena multidão se encaminhav­a ao fim de todas as tardes. A Casa Hilda Hilst, no coração da Praça da Matriz, também ofereceu uma festa e bar abertos a quem quisesse chegar.

Claro, também houve problemas. A tenda onde se desenrolav­a a programaçã­o principal concorre para ser uma das piores já montadas pela Flip —mesmo comparada aos debates na Igreja da Matriz, ano passado.

Quente e apertada, tinha sérios problemas de som —na sessão de abertura, foi difícil ouvir das últimas fileiras Fernanda Montenegro ler trechos de Hilda Hilst, por exemplo. O espaço era sempre invadido por sons da rua, além do barulho de um gerador próximo.

A compositor­a Jocy de Oliveira chegou a reclamar, em seu debate com o sonoplasta Vasco Pimentel, do retorno de áudio no ponto.

Diferentem­ente do ano passado, a abertura não foi bemsucedid­a como introdução ao universo de Hilda Hilst — os trechos políticos lidos por Montenegro, por exemplo, pareciam servir mais para causar comoção do que como amostra representa­tiva da obra da homenagead­a.

O americano Colson Whitehead, um dos melhores autores desta edição, pareceu não embarcar nas interpreta­ções oferecidas pelo mediador de sua mesa, o que impediu a conversa de fluir. Não à toa, o carioca Geovani Martins acabou tendo mais espaço do que ele.

Nessa mesa, o clima pesou quando um espectador anônimo perguntou ao autor de “O Sol na Cabeça” se o sucesso que alcançou neste ano não era devido apenas ao fato de ele vir de uma família pobre e morar numa favela. Martins foi pego despreveni­do e disse que quem deveria responder eram os leitores.

Mulheres e negros estavam presentes entre os convidados na mesma proporção que no ano passado. Mas, desta vez, a Flip não batia o bumbo para alardear isso como fez na edição anterior —o que implicava uma crítica implícita a curadores do passado.

“Na coletiva [de anúncio da programaçã­o], frisamos que [o número de negros ou mulheres] não deve ser mais a primeira notícia. Foi no ano passado porque era uma novidade. Agora estabilizo­u, vai ser assim para sempre”, diz a curadora Joselia Aguiar.

O resultado é uma festa mais relaxada —em que negros e mulheres falavam sim sobre ser negros e mulheres, mas também colocaram suas obras à frente de suas identidade­s. Assim, os debates identitári­os soaram mais originais e menos pautados pela retórica das redes sociais.

A curadora, questionad­a em entrevista a jornalista­s na manhã deste domingo (29), disse achar que não há diferenças nessa área entre o ano passado e este —e que a ideia de que minorias vieram à Flip para falar sobre serem minorias foi uma distorção causada pela imprensa em 2017.

“Talvez a cobertura [da imprensa] faça parecer que em 2017 nós só falamos disso. Mas desde o começo eu dizia que alguns autores negros não iam falar sobre a questão racial. Como neste ano a homenagead­a era a Hilda Hilst e fizemos, por exemplo, mesas sobre o amor e a morte, acho que as pessoas viraram a chave”, afirma.

Os debates identitári­os soaram mais originais e menos pautados pela retórica das redes sociais

 ?? Marcus Leoni/Folhapress ?? Autores convidados para a Flip leem poemas de Hilda Hilst em cerimônia de encerramen­to
Marcus Leoni/Folhapress Autores convidados para a Flip leem poemas de Hilda Hilst em cerimônia de encerramen­to

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil