Folha de S.Paulo

Por que homenagear aspectos patéticos de poeta discreta, e não grandes nomes?

- Felipe Fortuna

é diplomata, poeta e ensaísta. Publicou recentemen­te Taturana (Pinakothek­e) e a tradução do longo poema Briggflatt­s (Topbooks), de Basil Bunting.

No dia 7 de janeiro de 1968, o crítico Nogueira Moutinho publicou, nesta Folha, resenha sobre “Poesia” (19591967), de Hilda Hilst, que acabara de sair pela editora Sal.

Depois de elogiar a qualidade material da edição, reclamou da ausência de um índice e declarou que “o volume, infelizmen­te, parece ter sido elaborado à la diable”, não sendo possível saber se era uma antologia ou uma reunião de toda a obra poética.

Àquela altura, o crítico não desconfiav­a da operação silenciosa executada pela poeta: a supressão dos seus três primeiros livros, “Presságio” (1950), “Balada de Alzira” (1952) e “Balada do Festival” (1955) —este com título que, diante da Flip, ganha sentido irônico.

Mais adiante, Moutinho tocou em assunto de ainda maior relevância: Hilda se nutria da poesia de Cecília Meireles e Jorge de Lima, sem produzir com igual magnitude.

Sua avaliação é elegante, mas inclemente: “Não é uma voz original de primeira fila (...). Não é uma iniciadora, uma criadora original, mas a sua discreta penumbra vocabular, a diluída disposição que comunica aos vocábulos, os seus meios-tons esbatidos e os seus ritmos flexíveis e dóceis esboçam uma melodia cujo fraseado seria mesmo mais nítido e preciso, se a poetisa impusesse uma disciplina constrange­dora à sua fluida espontanei­dade.” Hilda Hilst seria, pois, apenas poeta de “discreta riqueza”.

Para quem lê poesia e crítica, basta. Na Flip de 2018, onde interessa mais o mercado do que a literatura, a avaliação de quem lê não interessa tanto. Persiste a exploração dos aspectos mais patéticos da vida da poeta, como a sua vontade de falar com os mortos e o lançamento crepuscula­r de sua pornografi­a, sem qualquer ideal libertador —pois a intenção de Hilda Hilst era ganhar leitores e espaço.

Na canhestra releitura de sua obra, sequer se menciona que a poeta aderiu de corpo e alma à Geração de 45 —conservado­ra, retórica, até mes- mo reacionári­a aos avanços obtidos pelos modernista­s. Também não se menciona que a escritora nunca foi feminista —e até se pode falar de uma entrega feminina ao homem em sua poesia.

Para mim, leitor constante de poesia, a poeta nunca deixou de ser fiel àquela estética. Carlos Drummond de Andrade já havia escrito “A Rosa do Povo” (1945) e “Claro Enigma” (1952), mas Hilda Hilst, 25 anos mais jovem, continuava vinculada aos preceitos do Clube de Poesia de São Paulo. E frequentav­a intensamen­te a alta burguesia daquele estado, presente a festas e jantares que pouco serviram à divulgação de sua literatura.

Não valeria, pois, o esforço de homenagear grandes escritores, tais como os já citados Cecília Meireles e Jorge de Lima —e até, se for para aproveitar a ganga de 45, Lêdo Ivo?

Nos anos 50, a publicação de “Morte e Vida Severina” (1955) e o advento da poesia concreta, em 1957, seriam os dois polos de atração da discussão literária (aos quais se soma, na ficção, a publicação de “Grande Sertão: Veredas”, em 1956).

Nada disso tem a ver com a literatura de Hilda Hilst, que lança “Roteiro do Silêncio”, em 1959, e “Ode Fragmentár­ia”, em 1961. Mas, afinal, literatura é só mercado ou ainda vale a pena ler e estudar?

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