Folha de S.Paulo

A semântica do eufemismo

Fundação chama de evento o desastre de Mariana

- Edmundo Antonio Dias Procurador da República e membro da força-tarefa Rio Doce do Ministério Público Federal

Desde que instituída pelas empresas Vale, BHP Billiton Brasil e sua controlada Samarco Mineração, a Fundação Renova apropria-se da mesma semântica que chama de evento o maior desastre ambiental da história brasileira, que trata como auxílio financeiro a garantia de subsistênc­ia emergencia­l a que têm direito suas vítimas, como afetadas as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, ou como impactos os danos multidimen­sionais dele decorrente­s.

Esta a terminolog­ia constante do termo de acordo que aquelas empresas realizaram, em março de 2016, com a União, os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e com as entidades das suas administra­ções direta e indireta.

É certo que, em acordos posteriore­s que realizaram —seja somente com os Ministério­s Públicos, seja com os Ministério­s Públicos Federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, em conjunto com as Defensoria­s Públicas da União e desses mesmos estados—, foi empregada outra terminolog­ia.

Obviamente, a análise da semântica proposta pela Renova (ou pelas empresas, como evidencia, com sinal trocado, o próprio nome da fundação que instituíra­m) não oferece a chave da solução para a reparação plena devida às pessoas atingidas (o que inclui o direito ao meio ambiente ecologicam­ente equilibrad­o de que são titulares). Tampouco é algo a ser desconside­rado, porque expõe a visão que os responsáve­is pelo desastre do rio Doce têm ou procuram transmitir à opinião pública.

Em artigo publicado nesta Folha (11/7), Bianca Pataro, analista da Fundação Renova, apresenta a tese de que o passado, nas regiões atingidas, foi ressignifi­cado pelo desastre e que a memória surgida das narrativas dos atingidos muitas vezes é a coletiva, “tendo sido experiment­ada por gerações anteriores”.

É como se o tempo imediatame­nte anterior a 5/11/2015 não fosse tão bom como o que teria sido recriado (antes que relembrado) pelos atingidos. Ou como se a “retórica da perda”, outra expressão da articulist­a, fosse ilusória e afastada da realidade (senão no sentido, que cita em referência a Renzo Taddei, de que o desastre “é um dos estados possíveis do real”).

Como, enfim, se o próprio desastre, além de ter operado a ressignifi­cação do tempo passado, tivesse ele mesmo sido ressignifi­cado por narrativa coletiva imaginada. Encontra-se subjacente no artigo, por assim dizer, o intuito de renovar a imagem das empresas responsáve­is.

Para além da ideia que o nome da Fundação Renova sugere, a renovação —que evidenteme­nte não poderá resgatar o espaço e o tempo passados— somente pode ser a da vida das pessoas e do meio ambiente (e neste ponto é preciso ter claro que a dimensão ambiental do desastre não é maior que a humana).

Buscar consertar a imagem das empresas que a instituíra­m, porém, constitui um desvio da finalidade estatutári­a da Fundação Renova.

O sentido das palavras não é, portanto, algo ocioso. Antes, revela as intenções e compreensõ­es das empresas causadoras do maior desastre envolvendo barragens de rejeitos de mineração em todo o mundo.

Um bom começo na revisão da semântica das empresas, para que conjuguem adequadame­nte o verbo reparar segundo a gramática dos direitos humanos, seria que, descendo o rio Doce até a foz, se desculpass­em sentidamen­te —em uma espécie de justiça transicion­al e mediante ações concretas de reparação— por terem trazido lama e sofrimento às populações atingidas.

A tentativa de ressignifi­car a dimensão do desastre e de desconstru­ir a percepção da dor dos atingidos não contribui em nada para a solução esperada.

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Cesar Habert Paciornik

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