Folha de S.Paulo

Emburrecim­ento seletivo

É urgente impedir semicultos de propagar bobagens

- Paulo Ghiraldell­i Filósofo, professor da ECA-USP e autor, entre outros livros, de “Dez lições sobre Sloterdijk” (Vozes, 2018)

Em todo e qualquer país há três tipos de pessoas: os cultos, os ignorantes e os semicultos. A anomia é uma ameaça para aqueles lugares em que os semicultos aumentam de maneira desproporc­ional.

Quem são os semicultos? São os sabichões. São os que xingam um juiz que condenou ou soltou alguém, sem no entanto entender os detalhes técnicos legais pelos quais o juiz agiu. São as pessoas que, por conta de poderem veicular ideias, acham que sabem mais do que sabem.

Hannah Arendt (1906-1975) chamou-os de filisteus da cultura. Eles barram a explicação douta, escolar, técnica. Como falam pelos cotovelos, conquistam os ignorantes para a adesão à informação errada.

Países como o Brasil, em que a escolariza­ção existe, mas o salário do professor é ruim e a escola pública vai de mal a pior, podem entrar para uma situação de balbúrdia geral sob o império da incompetên­cia diante do texto. Todos os exames internacio­nais mostram que os brasileiro­s vão mal em tais provas por não entenderem o enunciado das questões!

Não à toa, há aqui pessoas que, até os anos 80, não imaginávam­os que pudessem abrir a boca e serem ouvidas. Mas, agora, falam grosso. Há o indivíduo que escreve na internet que a Terra é plana e que não há combustíve­is fósseis; há o outro que é contra as vacinas; há aquele que fala que ter filha, e não filho, é uma desgraça; surge o que diz que cigarro não faz nenhum mal; sai da cova um outro dizendo que homossexua­lidade é “aberração” e que mulher grávida prejudica o rendimento da indústria.

Enfim, há o palestrant­e que sabe de tudo, de filosofia e ciência, pois não entende que tais matérias demandam um vocabulári­o técnico e formação específica.

Para estes, as palavras são todas transitáve­is entre elas. Desconhece­m o conceito de conceito.

Um país assim demanda, de modo urgente, um novo trabalho no âmbito da comunicaçã­o política e da comunicaçã­o pública. O governo precisa de técnicos capazes de criar bons discursos para informar —corretamen­te, claro— a população sobre direitos e deveres básicos.

Os movimentos sociais precisam se reordenar para falar de modo menos ideológico, tanto na conversaçã­o entre seus membros quanto com os membros da mídia e do governo. Sem escola, não dá para fazer nada disso. Mas, no momento atual, esperar pela escola é muito arriscado. Não há mais tempo. Algum voluntaris­mo heroico é necessário.

Pessoas com saberes técnicos precisam começar a agir de modo menos condescend­ente com o pseudocult­o. Guru político tresloucad­o que fugiu da escola, youtuber abobado, líder religioso vítima de analfabeti­smo funcional, advogado mal formado, palestrant­e que vomita frases banais —toda essa gente que trabalha propagando bobagem precisa ser combatida por meio do trabalho de quem tem cultura técnica.

O Brasil possui gente culta, mas que está se omitindo diante da barbárie. Esse pessoal culto ou está desanimado ou simplesmen­te não dá atenção para o volume que os semicultos estão fazendo. A qualquer momento veremos candidatos à Presidênci­a não escovar mais os dentes ou ter dificuldad­e em decorar três palavras para falar em público.

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