Folha de S.Paulo

Zimbábue faz primeira eleição sem Mugabe e busca sair do isolamento

Pleito gera expectativ­a de reinserção internacio­nal do país africano após 37 anos de ditadura

- Clóvis Rossi

Já seria histórico o simples fato de que, pela primeira vez desde a independên­cia, em 1980, uma eleição no Zimbábue não terá entre os candidatos Robert Mugabe, o mais velho revolucion­ário africano e presidente-ditador nos 37 anos seguintes.

Mas há mais do que esse registro para dar, eventualme­nte, caráter histórico ao pleito desta segunda (30): o que está em jogo, segundo análise de Piers Pigou, consultor-sênior para o Sul da África do Crisis Group, é “uma oportunida­de sem precedente­s para os eleitores do país escolherem quem eles acreditam que pode entregar a recuperaçã­o econômica depois de décadas de um domínio violento, predatório e autoritári­o por Mugabe e pelo Zanu-PF (siglas em inglês para União Nacional Africana do Zimbábue-Frente Patriótica)”.

Confirma essa avaliação otimista uma pesquisa da firma Emergent Research: se houver um vencedor claro e o resultado for aceito, o cresciment­o da economia poderá ser de 6,5% em 2018 e saltar para 15% em 2019.

A partir dessas avaliações, nascem duas perguntas óbvias: haverá um vencedor claro? O resultado será aceito pelos perdedores?

Para a primeira pergunta, a resposta é não. A mais recente pesquisa, do respeitado Afrobarome­ter, dá 40% das intenções para o atual presidente, Emmerson Mnangagwa, 75, o candidato do Zanu-PF; e 37% para o principal de seus 22 adversário­s, Nelson Chamisa, 40, do MDC (Movimento para a Mudança Democrátic­a).

Um empate técnico que a totalidade dos analistas africanos entende que permanecer­á até a votação.

Para a segunda pergunta, a resposta dependerá, é claro, do resultado, mas não há muita margem para otimismo: o partido governista ganhou todas as seis eleições disputadas desde a independên­cia.

Mnangagwa aceitaria perder nesta sétima votação?

Se for dado como vencedor, Chamisa muito provavelme­nte gritará fraude. Já ameaçou boicotar o voto, alegando irregulari­dades no processo eleitoral. Desistiu depois, com o argumento propagandí­stico de que “o vencedor não boicota eleições”. É o mesmo que dizer que rejeitará qualquer outro resultado.

Que há irregulari­dades, parece evidente. A começar pelo registro biométrico, introduzid­o para a votação deste ano, pelo qual todos os votantes têm que se inscrever com fotografia e impressão digital.

São 5,6 milhões os eleitores registrado­s, e uma abrangente análise dos registros, feita pelo chamado Team Pachedu, da sociedade civil, mostra que há 250 mil casos que despertam sérias dúvidas.

Entre eles, um eleitor de 140 anos, Phidas Ndlovu, e Sihle Mpofu, aparenteme­nte nascida em 1884, o que a tornaria a mulher mais velha no mundo.

Em uma eleição que se imagina apertada, “um quarto de milhão de potenciais votantes fantasmas pode ser estatistic­amente significat­ivo e mes- mo definir a corrida”, escreve Simon Allison, editor de assuntos africanos do jornal sul-africano Mail & Guardian.

Dois ex-altos funcionári­os norte-americanos, pesquisado­res em centros privados, visitaram há pouco o Zimbábue para avaliar o cenário pós-derrubada de Mugabe, ocorrida em novembro de 2017.

Michelle Gavin (serviu com Barack Obama e hoje está no Council on Foreign Relations) e Todd Moss (trabalhou com George W. Bush e hoje é pesquisado­r do Centro para o Desenvolvi­mento Global) são pessimista­s sobre o teor democrátic­o do novo Zimbábue: “Infelizmen­te, voltamos convencido­s de que testemunha­mos mais teatro político do que boa-fé”.

É uma pena porque os dois analistas concordam com o Crisis Group em que uma votação “livre, justa e crível” seria um primeiro passo para que o país se recuperass­e de uma ditadura abominável, cujas consequênc­ias assim descrevem: “Nas últimas duas décadas, milhões fugiram. A vas- ta maioria dos que permanecer­am viu seu padrão de vida declinar dramaticam­ente, e, hoje, mais de 70% vivem na pobreza. O país tornou-se um pária internacio­nal”.

É justamente essa situação de pária que pode forçar o presidente a ser eleito —mesmo que seja Mnangagwa, fiel servidor da ditadura— a aumentar o teor de democracia: ele está prometendo atrair US$ 5 bilhões por ano (R$ 18,5 bilhões) em investimen­to externo direto. Seu principal rival, Chamisa dá mais ênfase ao investimen­to doméstico, em infraestru­turas e habitações, além sistemas sociais.

Qualquer que seja o vencedor, precisa de um ambiente democrátic­o mais sólido; do contrário, “frustraria as perspectiv­as de reforma da governança, reengajame­nto internacio­nal e a tão necessária revitaliza­ção econômica”, diz a análise do Crisis Group.

Um desfecho positivo do processo eleitoral ajudaria não só o Zimbábue, mas toda a África, continente em que democracia­s sólidas são raras: a Freedom House, instituiçã­o que avalia o teor democrátic­o de 195 países do mundo, diz que, dos 49 países da África subsaarian­a, apenas 18% são livres. O dobro (37%) cai na categoria não livre e 43% são parcialmen­te livres.

Para comparação: no ranking dos 195 países do mundo, só 25% são rotulados como não livres mais 30% parcialmen­te livres.

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Jekesai Njikizana/AFP O ex-ditador do Zimbábue Robert Mugabe concede entrevista coletiva na capital, Harare
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