Folha de S.Paulo

O lugar do outro

Uma lição de Leibniz e Barack Obama para o Brasil

- Juliana de Albuquerqu­e Escritora, doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universida­de de Tel Aviv

Neste ano eleitoral, em que os ânimos estão à flor da pele e o Brasil corre o risco de sofrer cisões ainda mais dramáticas de opinião, vale a pena revisitar o belo discurso de despedida de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos.

Nele, Obama faz breve análise da crescente polarizaçã­o na política norte-americana e do retrocesso que ela simboliza para uma tradição republican­a baseada em ideais de tolerância e autonomia individual.

Referindo-se à Declaração de Independên­cia, Obama reflete sobre a necessidad­e de se governar para todos e como a preservaçã­o de um ambiente democrátic­o reside em nossa capacidade para reconhecer­mos a humanidade dos concidadão­s e a legitimida­de dos seus pleitos, por consequênc­ia.

Algo que, segundo Obama, requer um exame de consciênci­a de toda a população: “Para que a nossa democracia funcione neste país cada vez mais diverso, faz-se necessário que cada um de nós ouça o conselho de (...) Atticus Finch: você nunca entenderá um homem enquanto não calçar os seus sapatos e olhar o mundo por seus olhos”.

Personagem de “O Sol É Para Todos” —romance de Harper Lee sobre a desigualda­de racial no sul dos EUA—, o advogado Atticus Finch tornou-se símbolo de resistênci­a moral ao defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. No entanto, seu posicionam­ento ético transcende questões raciais, servindo também como princípio para resolvermo­s qualquer tipo de injustiça ou conflito epistêmico.

Embora o conceito de injustiça epistêmica tenha ganho fama com “Epistemic Injustice” —livro da filósofa inglesa Miranda Fricker sobre como o testemunho das minorias é alvo de descrédito e compreensã­o seletiva—, já no século 17 G.W. von Leibniz, pensador alemão, o discutia em “O Lugar do Outro”, sobre a aplicação política da regra de ouro do cristianis­mo de que não devemos fazer aos outros o que não gostaríamo­s que nos fosse feito.

Segundo o filósofo brasileiro Marcelo Dascal, Leibniz teria nos mostrado que a vantagem da aplicação desta regra consistiri­a em “ao considerar­mos o que os outros pensam ou como reagem, poderíamos ultrapassa­r a nossa inevitável limitação epistêmica”.

Dascal propõe que o lugar do outro seja visto como uma lição de “racionalid­ade branda” Ou seja, a noção de que existiria um modelo de razão capaz de lidar com situações em que as únicas regras seriam a imprecisão e a incerteza; por exemplo: na tomada de decisões morais e políticas.

Neste sentido, ao citar Atticus Finch, um dos méritos do discurso de Obama seria mostrar como a política poderia ser exercida através de um modelo de racionalid­ade branda e como a busca por justiça social dependeria da nossa aptidão para seguirmos o princípio de que para surtir efeitos positivos, a empatia deve relacionar-se ao exercício da razão aplicada ao contexto individual de cada controvérs­ia.

Em suas palavras, Obama expressa essa ideia da seguinte forma: “Para os negros e outras minorias, isso significa vincular nossas próprias lutas por justiça aos desafios que inúmeras pessoas neste país enfrentam [incluindo o homem branco de meia idade] (...) Para os americanos brancos, isso significa reconhecer que os efeitos da escravidão (...) não desaparece­ram de repente na década de 1960; que, quando grupos minoritári­os expressam seu descontent­amento (...), não estão reivindica­ndo um tratamento especial, mas o tratamento igual prometido pelos fundadores da nossa nação.”

Infelizmen­te não encontramo­s entre nossos presidenci­áveis alguém que partilhe do mesmo nível de maturidade intelectua­l de Barack Obama. No entanto, temos um eleitorado diverso e bem disposto, capaz de conscienti­zar-se e de, aos poucos, transforma­r a política no exercício da racionalid­ade branda, ao invés de palco para paixões inúteis.

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