Sobre a escravidão, Bolsonaro contou a história que quis
Portugueses ‘pisaram’ muito no território africano, e não há como tirar a responsabilidade de quem sabe que a tem
Professora titular do Departamento de Antropologia da USP, é organizadora, com Flavio Gomes, de “Dicionário da Escravidão e da Liberdade: 50 Textos Críticos (Companhia das Letras, 2018)
são paulo Vira e mexe alguém volta com a teoria de que a escravidão não foi ideia dos Ocidentais, mas sim dos próprios africanos. Nada mais covarde e perverso do que transformar a vítima em algoz. Vítimas, aliás, que sempre reagiram, e de inúmeras formas, ao cativeiro.
Na segunda (30), em entrevista ao programa de TV Roda Viva, foi a vez do presidenciável Jair Bolsonaro se sair com a seguinte frase: “se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos (...) Faziam o tráfico, mas não caçavam os negros. Eram entregues pelos próprios negros”.
Bolsonaro contou a história que quis, não a encontrada nos documentos. Esqueceu de explicar, por exemplo, que a escravidão já estava presente na Europa. Desde a Antiguidade, o continente conheceu diversas formas de escravidão, mas menos intensas ou disseminadas do que aquela que surgiria a partir do século 16. A escravidão mercantil.
Poucos povos deixaram de conviver com alguma forma de escravidão. No entanto, na África, a instituição se desenvolveu paralelamente a sistemas de linhagem e de parentesco. Os escravizados não eram entendidos, pois, como “coisas” ou “propriedades”, nem tampouco considerados centrais para o funcionamento regular dessas sociedades.
Já o contato luso com a África Negra teve longa história, antecedendo em até meio século a descoberta do Brasil. Em 1455, Zurara, em sua “Crônica de Guiné”, descrevia atividades portuguesas na foz do rio Senegal. Nessa época, o interesse luso estava voltado mais para o ouro, sendo que escravos, marfim e pimenta eram motivações secundárias.
Foi com a introdução da cultura do açúcar que a história girou: os escravizados tornaram-se fundamentais na produção agrícola, o negócio tornou-se muito lucrativo e o interesse se voltou da pimenta para o tráfico de viventes com os portugueses entrando continente africano adentro.
Enquanto isso, já em meados do 16, Lisboa era a cidade europeia que mais possuía escravos africanos: contava com cerca de 100 mil habitantes, dos quais 10 mil eram cativos.
Em Cabo Verde, São Tomé e Madeira desenvolveram-se ao longo do 16 e do 17 verdadeiras sociedades luso-africanas, condicionadas pelo comércio transatlântico. Em 1582, cerca de 16 mil pessoas viviam nessas ilhas, sendo 87% formada por escravizados.
Por volta de 1520, portugueses mantinham número razoável de feitorias na África, controlando caravanas de cativos que vinham do baixo rio Zaire e do Benin. Dirigiam-se para São Tomé, e, a partir de 1570 voltaram-se para o rico mercado do Brasil.
A chegada dos portugueses à costa atlântica subsaariana no começo do 16 alteraria de forma radical as modalidades de comércio, tanto no que se refere à escala, como ao recurso crescente à violência.
A nova conquista modificaria também modalidades internas de guerra e de redes de relacionamento no interior de estados africanos. Tudo com a interferência direta dos lusos, que “pisaram” firme no continente.
Com a cultura do açúcar, dentre os principais produtos do Império português, a situação se modificaria ainda mais, sobretudo a partir das relações estáveis com os congoleses. Naquele local, os portugueses destacaram-se por sua forte e estável presença, atuando no local como clérigos, traficantes e soldados.
Enquanto na primeira metade do século 16 o volume de africanos entrados no Brasil não passava de algumas centenas anuais, registram-se 3.000 por ano na década de 1580. Teve papel fundamental a conquista de uma nova feitoria em Luanda, a qual, a partir de 1576, se transformaria em posto ativo nesse tipo de comércio.
Por dois séculos os portugueses manteriam seus “pés” bem firmes em Luanda, na região do Rio Cuanza e Benguela. O certo é que, a essa altura, os lusitanos estavam bem familiarizados com as populações africanas que escravizavam. Além do mais, com o incremento do comércio do ouro e do marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação econômica portuguesa na Ásia, as relações foram ficando ainda mais corriqueiras.
A eficácia crescente dos traficantes portugueses do Atlântico na oferta de mão de obra, na regularidade no suprimento de cativos vindos daquele continente e o declínio dos preços fez com que, para a Europa do século 16, os africanos se transformassem em sinônimo de mão de obra escrava e os portugueses em grandes especialistas na arte de traficar dentro e fora da África.
Foram transportados para as Américas 12 milhões de africanos e africanas durante o período do tráfico negreiro, sendo que, desse total, 4,9 milhões tiveram como destino final o Brasil. O tráfico era um negócio complexo e dominado pelos portugueses, que acabaram promovendo inúmeras guerras e alterando a estrutura internas dos estados africanos com graves consequências atuais.
Os lusos “pisaram” muito no território africano, e não há como tirar a responsabilidade de quem sabe que a tem.