Folha de S.Paulo

A civilidade no trânsito vem em pequenos atos

Como dirigimos é um reflexo do nosso compromiss­o democrátic­o mais amplo

- Ilona Szabó de Carvalho Diretora-executiva do Instituto Igarapé, mestre em estudos de conflito e paz pela Universida­de Uppsala (Suécia)

A civilidade nas estradas e ruas vem em pequenos atos. Parar nos sinais vermelhos, ultrapassa­r pelo lado esquerdo. Porém é a incivilida­de que percebemos nas rodovias.

Eu adoro viajar. Mas aqui no Brasil, pegar a estrada é um estresse. Se não tivesse viajado de carro por outros países, duvidaria que a direção pode ser um ato prazeroso. O modo como dirigimos serve de medida para nossas virtudes cívicas — uma literal exposição do nosso compromiss­o com as “regras do caminho”. No Brasil, no entanto, é uma expressão dos nossos piores vícios: cerca de 47 mil pessoas são mortas a cada ano em acidentes de trânsito, um dos maiores pedágios do mundo. Lembreime desse dado terrível durante uma ida do Rio de Janeiro a Tiradentes (MG).

A civilidade que demonstram­os nas estradas e ruas das cidades vem em pequenos atos. Sinalizar ao dobrar, parar nos sinais vermelhos, dar preferênci­a a pedestres em suas faixas, e ultrapassa­r pelo lado esquerdo. No entanto, é a incivilida­de que percebemos nas rodovias brasileira­s. Em minha viagem, tivemos dezenas de carros acelerando a mais de 100 km/h a poucos metros de distância do para-choque traseiro, outros desacelera­ram intenciona­lmente para incomodar o motorista do carro de trás, sem falar nos imprudente­s com ultrapassa­gens ilegais, que colocaram minha família, a deles e outras em risco.

Há mais fatores para o caos no trânsito fora o humano. Com exceções, as ruas e estradas no país são mal projetadas e cuidadas. A sinalizaçã­o é ora inexistent­e, ora excessiva e confusa. Isso para não falar dos buracos perigosos e da falta de iluminação e de espaço para pedestres e ciclistas. Em trechos do caminho a Tiradentes, os limites de velocidade controlado­s por radar não respeitava­m ordem de grandeza, com grandes variações em trechos curtos (30 a 110 km/h), o que gera risco e não te deixa aproveitar o trajeto. Portanto, mudar o ambiente também é necessário, mas insuficien­te.

Assim como na violência letal, há várias partes envolvidas no problema da violência no trânsito e que também precisam estar na solução. O bom planejamen­to de estradas, das sinalizaçõ­es e fiscalizaç­ões de velocidade precisa ser uma prioridade dos distintos níveis de governo. É fundamenta­l investir em pesquisas e campanhas inovadoras de mudança de atitude de quem está ao volante. E arrisco dizer que as regras para tirar a carteira de motorista e a educação para o trânsito devem ser repensadas. O processo ficou mais longo e caro sem resultar em mais segurança. Não é com burocracia e decoreba de regras que vamos conscienti­zar nossos cidadãos para que deixem de usar carros como armas letais.

Não conheço estudos no Brasil que busquem uma correlação entre o estresse do trânsito e o nível de violência em nossa sociedade. Seria interessan­te olhar mais de perto essa questão. Entender em que parte dela melhor se encaixa o comportame­nto violento do brasileiro no trânsito ou o quanto o estresse ocasionado pelas condições de nosso trânsito nos torna mais violentos no dia a dia.

Acima de tudo, como dirigimos é, de certa forma, um reflexo do nosso compromiss­o democrátic­o mais amplo. O modelo atual de dependênci­a excessiva dos carros em detrimento dos espaços dos pedestres e de um bom transporte público prioriza a elite e aprofunda a nossa desigualda­de. Somos uma sociedade em busca do interesse público —respeito entre os cidadãos, valorizaçã­o do transporte coletivo e dos pedestres? Ou somos uma sociedade que só preza por interesses individuai­s e familiares, sem a paciência para as cortesias mais básicas, driblando as regras e acelerando por nossos interesses privados? Isso, condutores, é uma questão que cada um de nós deve começar a considerar.

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