Folha de S.Paulo

Aborto já

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Já reclamei aqui da semcerimôn­ia com que ministros do Supremo vêm tomando decisões que não encontram previsão expressa nas leis nem na Carta. Tem faltado ao STF a chamada autoconten­ção. Ainda assim, penso que a corte máxima fará bem se declarar inconstitu­cional a proibição do aborto. Como explicar a aparente contradiçã­o?

Como regra geral, o juiz não pode mesmo substituir o legislador. Faltalhe, para início de conversa, o mandato popular. Mesmo que a ausência de representa­tividade não fosse um problema, seria temerário concentrar num único indivíduo ou num colégio restrito o poder de elaborar e, ao mesmo tempo, aplicar as leis. A democracia, que é um jogo de freios e contrapeso­s, repele tal arranjo.

Mas a democracia tampouco pode dar-se ao luxo de ficar refém de um Poder ou da maioria dos cidadãos. Imagine-se, a título de experiment­o mental, que 51% dos eleitores tenham concluído que precisam de servos e elegem um Parlamento que reintroduz a escravidão no ordenament­o jurídico.

Absurdo? Sem dúvida. É para evitar que variações em torno desse exemplo se tornem realidade que a Carta confere à Justiça o poder de invalidar leis julgadas inconstitu­cionais. O fato de juízes terem essa capacidade não significa que devam usá-la sempre. Para o jogo democrátic­o fluir, é necessário que os magistrado­s saibam conter-se, só se valendo de poderes excepciona­is em situações excepciona­is.

A meu ver, o ativismo judicial pelo STF se justifica apenas para ampliar direitos individuai­s já contidos em princípios enunciados na Carta, mas que o Congresso, por alguma razão, não atualiza. Um teste prático é olhar para direitos que já tenham sido consolidad­os em democracia­s mais maduras, como o aborto e a despenaliz­ação do consumo de drogas. Não dá para aceitar que, em pleno século 21, pessoas precisem da autorizaçã­o de vizinhos para definir o que vão colocar ou tirar de seus próprios corpos.

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