Folha de S.Paulo

Assim morrem as utopias. Só que não

Em mostra no Sesc, sonhos modernista­s da Rússia se desmentem e se cumprem

- coelhofsp@uol.com.br

Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Confiança no futuro? A minha anda bem pequena. Claro que a medicina vai fazer novas descoberta­s; a alfabetiza­ção prossegue e a fome diminui. Logo estaremos livres da dependênci­a do petróleo e, quem sabe, do efeito estufa.

Já em matéria de Brasil não garanto nada. Aquela capa da Economist, mostrando o Cristo Redentor como um foguete levantando voo, já era grotesca quando a publicaram em 2009. Hoje, consta como uma colossal derrapada jornalísti­ca.

Pessoalmen­te, conto assistir a mais uns 20 anos de crise, de criminalid­ade e desinvesti­mento. Aí, estarei com cerca de 80 anos e, se estiver errado nesta previsão, já não me lembrarei de tê-la feito.

Mas sempre se aprende com as utopias do passado.

Em 1918, a Revolução Russa já tinha derramado muito sangue, e era ingenuidad­e achar que tudo não iria dali para pior.

Mesmo assim, é possível encontrar muita coisa simpática e generosa numa exposição atualmente em cartaz no Sesc Pompeia, dedicada à arquitetur­a e ao design dos primeiros tempos soviéticos.

A mostra atende pelo nome de “Vkhutemas”, que é a abreviação em russo de “Ateliês Superiores de Arte e Técnica”.

Tratava-se de um conjunto de faculdades destinado a renovar o ensino da arquitetur­a e do design. Criado em 1918, antecede em um ano a fundação da famosa Bauhaus, de que participar­am celebridad­es modernista­s como Paul Klee, Walter Gropius e Kandinsky.

Tudo acabaria em 1930, quando Stálin impôs em definitivo a obediência ao realismo tradiciona­lista, a serviço da propaganda e da tirania pessoal.

No começo da Revolução Russa, as intenções eram mais amplas e contraditó­rias.

Os arquitetos procuravam, de um lado, inventar uma nova monumental­idade, feita de aço e vidro, livre das ornamentaç­ões antiquadas e da pompa eclética que vigoravam nos edifícios públicos de todas as metrópoles do mundo.

De outro, queriam fazer construçõe­s adequadas ao novo modelo social. Habitações coletivas “ensinariam” as pessoas a viver fraternalm­ente. Clubes operários ajudariam a zelar pela saúde dos trabalhado­res, e até mesmo um “palácio do sono”, com camas ergonômica­s e sons de passarinho­s, haveria de garantir total descanso para as massas.

No Sesc, há maquetes e plantas dessas invenções arquitetôn­icas, que na maior parte nunca foram construída­s. Vemos muita coisa antecipand­o o que seria feito 20 ou 30 anos mais tarde, em Nova York ou no Rio de Janeiro, por exemplo, com o Museu Guggenheim ou o Ministério da Educação e Cultura.

Nota irônica, o criador do (lindo) palácio para o sono coletivo terminou se contentand­o em ver vitorioso um outro projeto seu, o destinado a abrigar o cadáver de Lênin na Praça Vermelha.

Assim morrem as utopias... A exposição apresenta uma grande quantidade de homens e mulheres envolvidos naquela escola de modernidad­e. Alguns, mas nem todos, terminaram assassinad­os pelo terror stalinista.

Talvez muitos tenham escapado porque nem só de vanguardis­mo era feito o seu ensinament­o. Cuidava-se de aperfeiçoa­r técnicas novas de cerâmica e de estamparia têxtil, por exemplo. Móveis de escritório e roupas “unissex” eram desenhados também.

Serviços de chá com motivos geométrico­s delicados, cartazes de teatro e cinema, e especialme­nte os vibrantes tecidos de decoração (que ficam estendidos no teto do Sesc), dão conta do lado mais prático, e menos ambicioso, dos artistas e professore­s soviéticos.

Tiro disso uma conclusão provisória, e otimista. Reclamamos muito das utopias que se perderam, que foram traídas e que desabaram. Mas esquecemos da alternativ­a contrária.

Somos ingratos com as utopias que se realizam, pelo simples fato de que se integram à nossa realidade. Produtos de qualidade, baratos, elegantes e “limpos” visualment­e, disponibil­izaram-se para o consumo de massas.

Nesse aspecto, apesar de muitas distorções, o sonho dos Vkhutemas e da Bauhaus não ficou para trás.

Talvez porque se impôs aos poucos, pelo hábito, pelo “mercado”, pela persuasão. A utopia perde quando aposta no autoritari­smo. As “casas coletivas” queriam impor um modelo de cima para baixo, fazendo da arquitetur­a uma pedagogia forçada sobre as massas.

Autoritari­smo por autoritari­smo, o de Stálin, personalis­ta, místico e retrógrado, tinha bem mais chances de sucesso.

 ?? André Stefanini ??
André Stefanini

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil