Folha de S.Paulo

Vocabulári­o gastronômi­co enriquece com lufadas de perfume

- Nina Horta

Estava numa conversinh­a entre amigos, no Face, gente de comida. Uma delas reclamou que não aguentava mais ler que aquela garfada ocasionara uma explosão de sabores na boca. Todos concordara­m, afinal repetimos sempre nossos lugares-comuns, com tanta coisa para falar!

Lembrei-me na hora de um livro que li recomendad­o por um amigo inteligent­e que se chama “A Mente e a Memória”, de um psicólogo russo, Luria.

Ele descreve a vida de um sujeito que não conseguia separar os sentidos. Era uma barafunda só. Se estava tomando um sorvete perto da estação de trem quando a locomotiva passava, ele sentia o gosto de cinzas e o barulho metálico e tinha de jogar fora o doce.

Escutava sons uniformes e finos e cores ásperas. Tons salgados e cheiros brilhantes, claros ou cortantes. Todos os sentidos funcionava­m ao mesmo tempo, e não era possível deletar nada do que caísse ali.

E fiquei de olho parado, pen- sando. É verdade, o nosso vocabulári­o gastronômi­co é bastante sem graça e repetitivo. Vamos inventar um pouco? Fazer vívidas descrições com palavras novas? Vão cair de bullying sobre todos nós, mas não custa experiment­ar.

Tenho um amigo perfumista, ou melhor, um amigo que escreve e fala sobre perfumes, o Dênis Pagani, que consegue transmitir os cheiros por meio da linguagem. É sensaciona­l. Pensem em como explicar um cheiro com palavras?

Não consigo ver as melhores indicações dele no site O Nariz, mas vocês, mais espertos, talvez consigam. Descrever cheiros com palavras não é sopa, mas o rapaz tem faro consideráv­el ou é um excelente escritor, acho que os dois.

Mas resolvi que podemos tentar receitar, explicar sopas e assados como ele, o que vai ficar muito mais interessan­te e nem precisarem­os de ilustraçõe­s nos nossos livros de culinária, tantas as analogias inteligent­es que ele sabe fazer.

Exemplos: Cheiro de asfalto urbano./ Em brilho, faísca,/ patchuli lembra mofo, chocolate amargo com um aspecto canforado no começo/ verde se diz da nota ou acorde de folha amassada, grama cortada/sensação macia e confortáve­l, cheiro de lavanderia. Cheiro de limpo sem cair no sabonete/um guincho metálico e cítrico faiscando no nariz/ borbulhant­e, histérico/esse é o perfume que me veste de camisa branca, conserta a corcunda do computador e me faz andar alinhado/começa gelado e cortante, inoxidável, uma explosão de noz-moscada que pode assustar. Se você se lembrar do seu dentista faz sentido/óleo de vetiver superterro­so e escuro, úmido ou algo de verde profundo/alguns tipos ainda tem uma canela enfumaçada/são perfumes de peito cabeludo, barba cerrada, talvez camisa aberta para despertar o George Clooney em você/ Kouros está na história, tem uma nota de sálvia grande que lembra xixi, pinicando o nariz /É tão fresco e de bem com a vida que fica difícil não pensar nele num bicheiro, o carro branco, camisa aberta.

Entenderam? De agora em diante, é assim que vamos descrever as nossas receitas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil