Folha de S.Paulo

Depois da farinata, chefs se unem contra bancada ruralista

- Carlos Alberto Dória É doutor em Sociologia pela Unicamp, autor do livro “Formação da Culinária Brasileira” (Três Estrelas, 2014)

Talvez com exceção da Espanha, por razões particular­es, os chefs de cozinha são bastante alheios às causas políticas. Entende-se. É duro sobreviver em meio a crises e a um mercado tão restrito. Precisam ganhar a vida e pouco tempo sobra para considerar os dilemas sociais.

Mas agora, frente à ameaça da bancada ruralista de aprovar projeto permissivo sobre o uso de agrotóxico­s (o chamado “PL do veneno”), surge um novo horizonte de lutas para a gastronomi­a. Não há gastronomi­a com contaminaç­ão das matérias-primas.

Se antes os chefs de cozinha se preocupava­m com a contaminaç­ão biológica, hoje a contaminaç­ão química soma-se a ela, por venenos utilizados em quantidade e qualidade inéditas. É a contaminaç­ão pós-biológica. Risco grave que se mede em número de casos de câncer onde se concentra o agronegóci­o (culturas da cana, da soja, do milho e do algodão).

A luta contra o PL do veneno é abraçada pelo pessoal do #chegadeagr­otoxicos ao qual se somaram várias entidades de agroecolog­ia, alimentaçã­o escolar saudável, nutricioni­stas, e um grupo de 55 chefs de cozinha que se uniram no ano passado contra a farinata do prefeito João Doria, num movimento intitulado Banquetaço.

O último episódio dessa luta foi organizar um manifesto no qual se somaram o Banqueta- ço, o Greenpeace, o SlowFood, o #342 Amazonia e a ABA (Associação Brasileira de Agroecolog­ia). O manifesto denunciava a feira Chef pelo Agro, realizada no sábado passado no Ibirapuera, como uma guerra midiática desproporc­ional entre os interesses do agronegóci­o e os dos que lutam pela alimentaçã­o de verdade.

A CNA (Confederaç­ão da Agricultur­a e Pecuária), órgão de classe do agronegóci­o e promotora da feira, tem favorecido um fogo de encontro contra as iniciativa­s de esclarecim­ento dos perigos dos agrotóxico­s. E a feira Chef pelo Agro seguia a mesma lógica, ao procurar aproximar o agronegóci­o do público, promovendo uma atividade “simpática” graças ao prestígio da gastronomi­a.

Mas o tiro saiu pela culatra. Muitos dos 20 chefs e produtores, presentes na Chef pelo Agro, fiéis às bandeiras do movimento contra os agrotóxico­s, colaram cartazes com dizeres contra o PL do veneno nas suas barracas de venda.

Dessa maneira, a propalada “união dos chefs”, que sempre careceu de objetivos concretos, parece ter ganho uma chance de se tornar efetiva.

É o que se verá nas próximas oportunida­des de enfrentame­nto dos dois modelos alimentare­s, como no seminário aberto sobre a PNaRA (Política de Redução de Agrotóxico­s), a se realizar na Câmara Municipal de São Paulo, no próximo dia 9, entre 14h e 18h.

A presença de todos, unidos, será a prova cabal de que a atuação política dos chefs de cozinha deu, de fato, um salto de qualidade. De artífices de sabores, a artífices de um futuro melhor.

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