Folha de S.Paulo

Férias de Jorge Amado no Recife inspiram passeios

Temporada do escritor baiano na cidade rendeu frutos literários e inspira passeios

- Fernando Granato

Não foi nas ladeiras e nos becos escuros do Pelourinho, nem na orla do cais de Salvador (BA) que surgiu um dos personagen­s mais lendários de Jorge Amado (1912-2001), escritor que divulgou para o mundo as histórias da Bahia.

A inspiração para compor Quincas Berro D’Água, o pacato chefe de família que se tornou um beberrão inveterado, veio de um cachaceiro que frequentav­a as areias da praia do Pina, no Recife (PE).

Jorge Amado costumava passar as férias de verão com a família na capital pernambuca­na. Hospedava-se na casa dos amigos Laís e Ruy Antunes, na cidade. Ou na do casal Dóris e Paulo Loureiro, na praia de Maria Farinha, distante 30 quilômetro­s. Assim foi entre 1959 e 1962.

Em seus livros de memórias, Zélia Gattai (1916-2008), mulher do escritor, lembrou-se das temporadas pernambuca­nas que renderam frutos literários. A casa da cidade era “imensa”, à beira do rio Capibaribe. “Mangueiras frondosas, chão forrado de mangas de tudo quanto era qualidade”, recordava a escritora em seu livro “Chão de Meninos”.

Zélia salientou ainda que Jorge Amado gostava de perambular pelas pontes sobre o rio e de visitar o centro antigo.

No mesmo livro, ela conta que bastava correr a notícia de que Jorge Amado estava na terra para chover convites para almoços e jantares.

“Visitávamo­s Gilberto Freyre no Solar dos Apipucos, bebíamos a cachaça de pitanga, almoçávamo­s com ele e Magdalena (sua mulher)”, escreveu ela. A casa do autor de “Casa Grande e Senzala”, morto em 1987, virou museu e pode ser visitada de segunda a sexta, das 9h às 16h30. O ingresso é R$ 10 (rua Dois Irmãos, 320).

Mas o que Jorge Amado gostava mesmo em suas temporadas pernambuca­nas era de “jogar pôquer e arengar com os amigos”, conta a pintora e poeta Tania Carneiro Leão, 82, testemunha dessas estadas no Recife.

Tania é viúva do poeta Carlos Pena Filho (1929-1960), a pessoa que comentou com Amado sobre a existência do boêmio da praia do Pina, figura usada em “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, novela que ganhou o mundo.

“Carlos, em meio ao carteado, disse que conheceu num boteco do Pina um cachaceiro convicto, que achou que uma garrafa continha cachaça e quando viu que era água deu um grito desesperad­o e cuspiu, dizendo que era alérgico àquele líquido insípido”, contou Tania. “Foi o bastante para Jorge guardar a história e registrar em sua novela. Ele adorava ouvir histórias e depois as usava em seus livros.”

Zélia Gattai, ainda no livro “Chão de Meninos”, lembrou que em 1959 seu marido, Jorge Amado, recebeu do amigo artista Carlos Scliar (1920-2001) a encomenda para escrever uma história curta para a revista Senhor. Como o escritor acabara de retornar das férias pernambuca­nas, tinha fresco na memória o caso narrado pelo poeta Pena Filho.

“Dentro de Jorge ficara o que ouvira em Pernambuco nas conversas de sotaque, conversas sem compromiss­o, conversa de quem não tem o que fazer, conversa de preguiça”, disse Zélia. “Daí saíra ‘A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água’, em dois dias, nem mais, nem menos.”

Quando a história foi publicada, em 1959, o escritor a dedicou aos amigos: “Para Laís e Ruy Antunes, em cuja casa, pernambuca­na e fraternal, cresceram, ao calor da amizade, Quincas e sua gente”.

O cenário em que vivia o sujeito que inspirou o personagem de Jorge Amado, a praia do Pina, é local pouco frequentad­o pelos turistas.

Fica numa área caracteriz­ada por uma linha contínua de arrecifes, paralela à orla, na altura de Brasília Teimosa, a maior favela da cidade.

Os habitantes, sobretudo pescadores, têm forte ligação com o mar. Jangadas ancoradas junto à areia mostram que a economia local ainda depende muito do peixe.

Aos domingos, a praia ganha efervescên­cia com o forró vindo dos barzinhos pé na areia. Uma infinidade de caldinhos e frutos do mar fresquinho­s sai das panelas diretament­e para as mesas. Os preços são mais em conta do que na vizinha Boa Viagem. Um espetáculo à parte é o trabalho dos garis, no fim do dia. Ao som de Reginaldo Rossi, o Rei do Brega, eles exercem seu ofício com uma alegria que só os pernambuca­nos sabem ter.

Quando estava hospedado no Recife, Jorge Amado gostava de frequentar o restaurant­e Leite, no centro (praça Joaquim Nabuco, 147), o mais antigo do Brasil ainda em funcioname­nto.

Inaugurado em 1882, quando o Brasil ainda tinha escravos e era governado por Dom Pedro 2º, o local conserva suas bandejas de prata e guardanapo­s de algodão puro.

Mas não era isso que agradava Jorge Amado. O que despertava seu interesse era o entra e sai de gente conhecida, como os escritores Gilberto Freyre (1900-1987), José Lins do Rego (1901-1957) e Ariano Suassuna (1927-2014), o escultor Francisco Brennand e o pintor Cícero Dias (19072003). Ou até estrelas internacio­nais como o filósofo francês Jean Paul Sartre e o escritor inglês Aldous Huxley.

As conversas na mesa do restaurant­e varavam as madrugadas e alguns dos casos ali acontecido­s foram registrado­s por Jorge Amado.

Um deles foi citado numa carta para Zélia Gattai, em julho de 1959. “Ontem jantávamos, à noite, no Leite”, contou. “No outro extremo da sala, numa mesa grande, jantava uma família. Dessa mesa saíram duas meninas, de uns 10 ou 11 anos, e vieram me pedir um autógrafo num caderno de notas.”

Na carta, Jorge Amado diz que, quando seu grupo pediu a conta, já estava tudo pago

pelo pai das meninas que pediram o autógrafo.

“Chamamos o garçom para pagar, mas em vez da conta, ele trouxe uma garrafa de champanhe Viúva Clicquot, francesa legítima”, escreveu. “Serviu-nos declarando que o jantar nosso estava pago pelo doutor José Paulo Cavalcanti, meu leitor e pai das duas meninazinh­as.”

Entre as especialid­ades da casa, o baiano apreciava a pernambuca­na sobremesa cartola, feita com banana frita sob camada calculada de queijo de manteiga, regada com nuvem de canela e açúcar. “Jorge era um glutão”, lembra a pintora e poeta Tania Carneiro Leão.

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Marcos Michael/JC Imagem Casario da rua da Aurora diante do rio Capibaribe, no centro do Recife
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“Coluna de Cristal”, obra com 32 metros de altura, de Francisco Brennand, no Parque das Esculturas, localizado em frente ao marco zero do Recife
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 ?? Rogério Monteiro/ Ministério do Turismo Adolfo Santos Sonteria/Folhapress Divulgação Bernardo Dantas/Folhapress ?? 1 Praia de Maria Farinha
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4 Solar dos Apipucos, antiga Casa de Gilberto Freyre que virou museu no Recife 3
Rogério Monteiro/ Ministério do Turismo Adolfo Santos Sonteria/Folhapress Divulgação Bernardo Dantas/Folhapress 1 Praia de Maria Farinha 2 Rua do centro antigo do Recife 3 Restaurant­e Leite, no centro, o mais antigo do Brasil em funcioname­nto 4 Solar dos Apipucos, antiga Casa de Gilberto Freyre que virou museu no Recife 3
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