Folha de S.Paulo

Edição de contos aproxima leitor dos mistérios do assombro

Coletânea reúne 18 textos, de autores como Edgar Allan Poe, João do Rio, Virginia Woolf e Luigi Pirandello

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Leda Cartum Escritora, autora de ‘O Porto’ (Iluminuras) e ‘As Horas do Dia – Pequeno Dicionário Calendário’ (7Letras)

Tudo do que a gente duvida da existência acaba por ganhar mais formas de existir. O diabo, por exemplo, pode surgir por aí cheio de disfarces: travestido no corpo de um homem respeitáve­l; muito alto, com olhos admiráveis; na aparência de um lenhador, no meio do pântano; ou então como um ser repugnante, entediado e de ombros peludos.

Acontece até mesmo de o diabo não ser chamado por seus nomes mais conhecidos, nem ser tão maligno quanto imaginamos: um “Espírito da Vida” que aparece para mostrar o que acontece após a morte.

Rumores, ruídos, sons que não sabemos identifica­r na treva do quarto antes de dormir; um cachorro invisível que só se manifesta quando as luzes se apagam e ninguém consegue ver mais nada.

“Contos de Assombro” faz um apanhado das formas possíveis que esses seres de existência duvidosa assumem pelo mundo. Mais do que um livro de gênero que traz clássicos como Edgar Allan Poe ou Robert Louis Stevenson, a coletânea transita por narrativas do século 19 e início do 20 que se aproximam do desconheci­do e descrevem o assombro que sentimos nessa aproximaçã­o.

“Assombro” é uma palavra precisa: pode significar espanto ou medo —como quando flexiona e se torna “assombraçã­o”—, mas pode também querer dizer admiração ou maravilha. É na tensão entre aquilo que atrai e o que dá vontade de fugir que moram as sombras, os reflexos, os contornos que vemos com o canto dos olhos e não sabemos como nomear.

Entre os 18 contos, Virginia Woolf aponta as criaturas assustadiç­as que se espalham pela casa vazia; o personagem de João do Rio explora o pavor em suas diversas possibilid­ades enquanto escuta, da cama, barulhos esquisitos.

Mas as situações assombrosa­s também podem expandir as fronteiras do absurdo, ou revelar a sua outra face: o cômico. Luigi Pirandello fala de um gesto banal —o sopro de um homem ao constatar a brevidade da vida— com inesperado poder assassino; Humberto de Campos conta que a vingança de uma paixão não correspond­ida vai ser devorar, literalmen­te, os pedaços da carne roxa da amada.

O conto de Ivan Turguêniev inicia o livro com uma pergunta: “Mas e se admitíssem­os a possibilid­ade do sobrenatur­al, a possibilid­ade de sua interferên­cia no cotidiano, que papel deveria desempenha­r, depois disso, o bom senso?”.

Talvez todos os contos seguintes estejam, de certa forma, orbitando em torno dessa questão: nas situações mais simples ou mais fantástica­s, as narrativas revelam algum mistério que, por si só, desfaz qualquer resposta razoável.

Sobra o desconcert­o —e o que fazer com isso? Se soubéssemo­s, não estaríamos desconcert­ados. Fazemos então gestos estranhos, percebemos seres inauditos, ouvimos criaturas que rastejam no escuro, de repente nos damos conta de outras presenças ao nosso redor.

É desse tipo de sensação difícil de se explicar que nascem as histórias do livro “Contos de Assombro”, em que vida e morte se confundem continuame­nte. Autores de contextos tão distintos têm em comum o assombro contagioso de que nenhuma narrativa dá conta e que, por isso mesmo, cresce mais em todas elas.

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