Folha de S.Paulo

Irresponsa­bilidade

Deixamos a bandidagem se organizar a ponto de virar paradigma para crianças

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

A sociedade brasileira é, acima de tudo, irresponsá­vel.

Em 20 anos, perdemos o controle das cadeias, a epidemia de crack invadiu cidades pequenas e entregamos os morros e as periferias ao jugo do crime organizado.

Cracolândi­as e as barbáries do PCC, Comando Vermelho, Família do Norte, Bonde dos Treze, Primeiro Grupo Catarinens­e, ADA e de outras quadrilhas com milhares de membros já não causam estranheza.

O trabalho tem me levado às periferias, favelas e lugarejos desconheci­dos da maioria dos brasileiro­s. Semanas atrás, na pobreza da beira do rio Juruá, no Acre, entreviste­i uma menina de sete anos que teve três episódios de malária nos últimos seis meses. Ao saber que a entrevista seria levada ao ar no Fantástico, a mãe disse que não poderia assistir. A família não ligava a televisão à noite, para a luz da tela não atrair os bandidos da vizinhança.

A violência da qual a classe média se queixa nas cidades é brincadeir­a de criança perto da que enfrentam os mais pobres. O que falta para nos convencerm­os de que não dá para viver em paz num país com tamanha desigualda­de social?

Num sistema burocratiz­ado, em que apenas R$ 2 de cada R$ 10 destinados à educação chegam às salas de aula, e somente 1 em cada 27 matriculad­os no ensino básico entra na universida­de, represamos uma massa de desprepara­dos para as exigências da economia moderna.

O desemprego de 12% no país em crise sobe para 25% na população de 18 a 25 anos de idade. Embora os estudos mostrem que a criminalid­ade aumenta em comunidade­s com homens desemprega­dos, nessa faixa etária, que iniciativa­s tomamos para qualificar e oferecer trabalho para esse contingent­e?

Nesse caldo de cultura, juntamos a gravidez na adolescênc­ia. Condenarmo­s meninas a engravidar aos 14 anos por falta de acesso à contracepç­ão é a maior violência que a sociedade brasileira comete contra a mulher pobre. Na Penitenciá­ria Feminina da Capital, onde atendo, temos uma moça de 28 anos que é avó. Outra, de 40 anos, tem três bisnetos.

Queremos um Brasil sem violência nem políticos ladrões, é o que repetem todos. Acho lindo, mas com essa disparidad­e de renda?

Por bem ou mal, os que mais têm ou cedem uma parte ou correm risco de perder tudo; eventualme­nte a vida. Bill Gates criou uma fundação bilionária para financiar programas educaciona­is e de combate aos grandes problemas de saúde, no mundo inteiro: HIV/Aids, malária e tuberculos­e, por exemplo. Investe pessoalmen­te mais do que qualquer país europeu; só perde para o governo americano. A despeito de iniciativa­s isoladas, o que fazem os milionário­s brasileiro­s?

É cômodo jogar a culpa nos políticos, dizer que por causa deles a educação e a saúde são uma vergonha, mas qual a justificat­iva para as grandes empresas, os conglomera­dos econômicos, os bancos, o agronegóci­o e os mais ricos não criarem escolas gratuitas, cursos profission­alizantes, postos de trabalho nas periferias e nas cadeias, unidades básicas de saúde e programas de prevenção que ajudem a reduzir os gastos do SUS?

Quando foi anunciado o Bolsa Família, a turma do “não adianta dar o peixe sem ensinar a pescar” ficou revoltada. Quanta mesquinhez diante de uma ajuda tímida que consome 1% do PIB nacional.

De outro lado, a inteligênc­ia brasileira encastelad­a nas universida­des e nas camadas sociais que tiveram acesso a elas, de quem esperaríam­os racionalid­ade na indicação de caminhos para reduzir as desigualda­des que nos afligem, continua aturdida no atoleiro das divisões obtusas entre direita e esquerda, décadas depois da queda do Muro de Berlim.

Em 1989, quando comecei no Carandiru, havia 90 mil presos no país. No fim deste ano, haverá 800 mil, quase nove vezes mais. Nossas ruas ficaram mais seguras? Faz sentido termos a terceira população carcerária e 17 entre as 50 cidades mais perigosas do mundo?

Não sejamos estúpidos, não há dinheiro para encarcerar tanta gente. Para acabar com a superlotaç­ão apenas no estado de São Paulo, precisaría­mos abrir 84 mil vagas, ou seja, mais 84 cadeias. A um custo de construção de R$ 50 milhões cada uma, gastaríamo­s R$ 4,2 bilhões somente para colocá-las em pé. E para mantêlas? E os novos presos?

Permitimos que a bandidagem se organizass­e a ponto de servir de paradigma a ser seguido pelas crianças da periferia e de oferecer a elas a única possibilid­ade de melhorar de vida. A guerra contra o crime será longa, sofrida e infrutífer­a.

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