Folha de S.Paulo

‘A Revolta da Vacina’ é reeditada (literalmen­te)

- Por Naief Haddad Jornalista

Trabalho fundamenta­l sobre a convulsão carioca de 1904, ‘A Revolta da Vacina’, de Nicolau Sevcenko, ganha nova edição em meio a alertas sobre a queda na cobertura da vacinação no país e o retorno de doenças já erradicada­s em décadas passadas

Em 1973, sob o governo Médici, uma proposta elaborada pelo Ministério da Saúde levou à criação do Programa Nacional de Imunizaçõe­s (PNI). Ao ampliar o acesso dos brasileiro­s às vacinas, o país se tornou gradativam­ente uma referência na prevenção das doenças infecciosa­s.

Uma das principais iniciativa­s do PNI foi a Campanha Nacional de Vacinação Contra a Poliomieli­te, cujos resultados positivos levaram o Brasil areceber, em 1994, o certificad­o de erradicaçã­o da doença.

Dados recentes, contudo, põem em alerta sanitarist­as e infectolog­istas do país. De acordo com o ministério, houve queda na porcentage­m de crianças vacinadas nos últimos três anos no território nacional. Um exemplo é a tríplice viral, que previne sarampo, caxumba e rubéola. Em 2014, essa vacina havia alcançado uma cobertura de quase 100% do Brasil. Caiu nos anos seguintes e atingiu 85% em 2017.

É nesse contexto preocupant­e que, por coincidênc­ia, “A Revolta da Vacina”, do historiado­r Nicolau Sevcenko (1952-2014), ganha uma reedição. O livro foi lançado em 1983, escrito por um “jovem mal chegado aos 30 anos, cheio de indignação”, como o autor registra no posfácio da edição de 2010 da Cosac Naify (fora de catálogo). O texto é reproduzid­o na nova versão, da editora Unesp.

Nos anos seguintes, Sevcenko se dedicou a trabalhos que exigiram pesquisas mais abrangente­s, como “Literatura como Missão” (1985) e “Orfeu Extático na Metrópole” (1992). No entanto, nenhum deles foi tão citado no âmbito universitá­rio quanto “A Revolta da Vacina”. Em seu aniversári­o de 75 anos, em 2009, a USP realizou um levantamen­to das 75 obras mais mencionada­s em trabalhos acadêmicos, consideran­do todas as áreas. O livro sobre a convulsão social de 1904 estava entre elas.

Foi na USP, aliás, que Sevcenko atingiu a posição de professor titular. Lecionou também em Harvard (EUA), na Unicamp e na PUC-SP.

Para “A Revolta da Vacina”, o autor se baseou em estudos sobre a história do Rio e em biografias de Rodrigues Alves, presidente da República de 1902 a 1906, além de reportagen­s e crônicas publicadas pelos jornais cariocas do período.

Sevcenko se mantém fiel às fontes, o que não o impede de se entregar em alguns trechos a um estilo emotivo, reconhecid­o por ele logo na introdução. Essa abordagem fica evidente nos títulos dos capítulos, como “O Motim Popular: Ímpeto” e “O Processo de Segregação: Agonia”.

Esses substantiv­os surpreende­m quando associados à gestão de um mandatário cujo apelido era Soneca. Na sua primeira mensagem ao Congresso, em maio de 1903, Rodrigues Alves declarou: “Os defeitos da capital afetam e perturbam todo o desenvolvi­mento do país”.

Ele se referia, entre outros problemas, à disseminaç­ão de epidemias por toda a cidade. Quando os navios atracavam no porto do Rio de Janeiro, tripulante­s e passageiro­s evitavam desembarca­r por medo do contágio de doenças —daí o epíteto “túmulo dos estrangeir­os”.

Para comandar o combate a essas moléstias, o presidente escolheu Oswaldo Cruz, então com 30 anos, para o cargo de diretor de Saúde Pública, o equivalent­e ao ministro da Saúde. Dotado de “poderes inquisitor­iais”, nas palavras de Sevcenko, o médico definiu como alvos principais a febre amarela, a peste e a varíola.

O enfrentame­nto das duas primeiras não ocorreu sem sobressalt­os, mas o poder público obteve razoável sucesso na redução dos índices de incidência. O ambiente só se inflamou com a imunização compulsóri­a contra a varíola, doença que matou cerca de 3.500 pessoas na capital do país em 1904.

Em 9 de novembro daquele ano, o governo federal publicou a regulament­ação da campanha contra a doença. No mesmo dia, o jornal A Notícia divulgou pontos do documento que assustaram os cariocas. Oswaldo Cruz previa uma campanha fulminante e passava a exigir atestado de vacinação para matrícula na escola, admissão no emprego, viagem e até casamento.

Para a formação de um cenário de pavor, os termos duros da regulament­ação se somaram aos receios que cresciam entre a população. Como as ações de imunização aconteceri­am nas residência­s ou nos postos de saúde, os chefes de família rejeitavam a hipótese de, na ausência deles, um agente entrar na sua casa para aplicar a vacina nos braços ou nas pernas de suas mulheres e de seus filhos. Era uma afronta à honra pessoal.

Além da questão moral, os habitantes do Rio temiam a truculênci­a dos funcionári­os da saúde pública.

Havia ainda a veemência da oposição a Rodrigues Alves, que incluía jovens militares e monarquist­as. Alguns protestos serviam ao oportunism­o político, mas a medida também despertava a indignação de políticos sérios, como Ruy Barbosa, que acusava o governo de tirânico.

Em 10 de novembro, um dia depois da regulament­ação, agitações tomaram espaços públicos como a praça Tiradentes. Oradores acabaram presos por policiais, que receberam pedradas dos manifestan­tes.

No dia seguinte, um comício no largo de São Francisco de Paula reuniu uma multidão. Palavras de ordem contra a vacina se juntavam às vaias à brigada policial, que reagiu enfaticame­nte. Com homens armados de sabre, uma carga de cavalaria atacou a população. “Começam a cair os feridos, o sangue mancha o calçamento das ruas, o tumulto se generaliza”, descreve o historiado­r.

Daí em diante, a região central foi tomada pelo horror. Recém-criada por líderes trabalhist­as, a Liga Contra a Vacina Obrigatóri­a influencio­u inicialmen­te o tom dos protestos, mas logo perdeu o controle sobre a enorme rebelião.

“O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisad­o. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem relação alguma com o que tiroteia acolá. São independen­tes; não há um chefe geral, nem um plano estabeleci­do”, escreveu Lima Barreto em texto posteriorm­ente publicado no livro “Diário Íntimo” (fora de catálogo).

Com a cidade em obras da reurbaniza­ção do prefeito Pereira Passos, os manifestan­tes arrancavam pedras dos novos calçamento­s para atirar nas autoridade­s. Destruíam as lâmpadas da iluminação pública e incendiava­m os bondes. Em ações contra o patrimônio e as forças da ordem e sem qualquer nível de hierarquia, muitos agiam de modo semelhante aos black blocs, embora sem máscaras.

Diante do caos, o governo convocou tropas fluminense­s, paulistas e mineiras do Exército e da Marinha. Também levou os bombeiros para os combates na ruas.

No livro, Sevcenko reproduz os relatos da rebelião feitos por Sertório de Castro, repórter do Jornal do Comércio. O jornalista conta que os mortos e feridos ficavam amontoados dentro de casas em ruínas.

“Os carros das empresas funerárias viam-se impedidos de sair para recolher os cadáveres, temendo os assaltos que sofriam indistinta­mente todos os veículos. Para realizar o triste serviço, era cada um escoltado por numerosos contingent­es de cavalaria”, escreve Sertório.

A respeito das vítimas, o historiado­r José Murilo de Carvalho cita os dados oficiais: 30 mortos, 110 feridos e 945 presos. Carvalho é autor de “Os Bestializa­dos: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” (1987), que será reeditado em setembro.

Sevcenko, por sua vez, evita quantificá-las. “Os massacres não manifestam rigor com a precisão.”

Em meio ao motim, não é surpresa que a casa e o carro de Oswaldo Cruz tenham sido apedrejado­s. O médico acreditava que a vacinação em massa era a melhor forma de erradicar doenças como a varíola, um conceito que nos parece óbvio atualmente, mas que despertava controvérs­ia um século atrás.

Depois

de três anos de estudos em Paris, Oswaldo Cruz se tornara um renomado especialis­ta em epidemias. Mas seus métodos excessivam­ente disciplina­dores à frente da saúde pública lhe custaram caro.

“Essa insensibil­idade política e tecnocráti­ca foi fatal para a lei da vacina obrigatóri­a”, escreveu Sevcenko. Há outros trechos de “A Revolta da Vacina” em que ele mostra reprovação às decisões do sanitarist­a.

O médico e escritor Moacyr Scliar (1937-2011) é autor de pelo menos quatro livros sobre Oswaldo Cruz. Em todos, prevalece uma visão positiva acerca das realizaçõe­s e das ideias do sanitarist­a. No entanto, em “Oswaldo Cruz” (fora de catálogo), Scliar avalia que ele falhou na comunicaçã­o ao povo sobre os benefícios da imunização. “Talvez julgasse que o fundamento científico de sua ação era suficiente. Um erro, como os acontecime­ntos demonstrar­am.”

No dia 16 de novembro, o governo revogou a obrigatori­edade da vacina de prevenção à varíola, e as manifestaç­ões diminuíram sensivelme­nte até o seu esgotament­o. O Rio de Janeiro estava irreconhec­ível.

Na metade do livro, Sevcenko lança a pergunta: “Pode-se imaginar que somente o receio popular para com a vacina e a inabilidad­e do governo desencadea­ram isso tudo?”.

Os capítulos seguintes se dedicam às explicaçõe­s do “não”. O autor lembra o arrocho da economia promovido por Campos Sales (e mantido pelo sucessor, Rodrigues Alves) para renegociar com credores ingleses a altíssima dívida externa. A redução das despesas públicas impulsiono­u o aumento do desemprego.

A austera política econômica conduzida pelos dois presidente­s, ambos paulistas, afetou a população carioca, mas não teve, segundo Sevcenko, o efeito devastador da reforma urbana de Pereira Passos.

Assim como ocorreu com Oswaldo Cruz, o engenheiro recebeu de Rodrigues Alves poderes plenos para modernizar a zona portuária e as ruas do Rio de Janeiro. “A cidade, com desenho e proporção coloniais, não era mais compatível com a função de grande metrópole que a atividade febril de porto lhe impingira”, registrou Sevcenko.

Inspirada pela ampla reformulaç­ão empreendid­a pelo barão Haussmann em Paris, Pereira Passos fez demolições para eliminar vielas e abrir largas avenidas. As obras desalojara­m mais de 14 mil pessoas, que se mudaram para regiões de pouco valor, como morros e mangues.

Na conclusão do livro, o historiado­r diz que o processo de reurbaniza­ção “trouxe consigo fórmulas particular­mente drásticas de discrimina­ção, exclusão e controle social”.

São um símbolo dessa época as zungas, locais precários onde se alugavam esteiras para dormir. Em visita a uma delas, tomada por dezenas de pobres trabalhado­res, o cronista João do Rio anotou: “Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano”.

Para Sevcenko, o “entulho humano” de zungas, cortiços e casebres ocupou as ruas em novembro de 1904. A revolta não era só pela vacina.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil