Folha de S.Paulo

Nova geração de poetas brasileiro­s tenta fundir arte com mídias digitais

Discursos políticos, avaliações de restaurant­e e buscas no Google viram versos nas mãos de nova geração, que revisita a poesia concreta

-

Anahi Martinho

Poemas feitos com comentário­s de iFood e fotos de ex-presidente­s da República. Robôs que criam haicais e canções de protesto automatiza­das. E PDFs com trilha sonora que lembram uma versão lisérgica do concretism­o.

Sob influência meio dadaísta e usando a internet para furar o esquema editorial, uma nova geração da poesia brasileira tenta fundir a arte conceitual com as mídias digitais.

Surgida há um ano, a editora paulistana Shiva Press, por exemplo, lança os livros nos formatos PDF e HTML. O download é gratuito, mas aceitam “gorjetas” em bitcoin.

Muitos desses livros não foram “escritos”, mas construído­s com textos já existentes, como manuais de armas, constituiç­ões federais e anotações de sonhos. “Acho que livros não são retângulos de papel, mas experiênci­as concentrad­as de linguagem”, diz Raphael Sassaki, editor da Shiva.

Outra editora, a La Bodeguita, do Recife, surgiu em 2016 e já lançou mais de 30 livros, revelando boa parte da produção poética dessa geração —hip-hop, videogames, seriados de TV e a internet são algumas das matérias-primas.

“Sempre vai ter alguém tentando quebrar os limites da expressão”, diz o editor Ítalo Dantas. “É uma espécie de cavalo de Troia, um vírus implantado dentro do círculo.”

Uma influência do movimento é a poesia conceitual americana, em que escritores criam menos e editam mais, tendo como ideia central a missão de dar sentido ao ruído da vida contemporâ­nea.

Mais do que versos, esses poetas desenvolve­m técnicas para filtrar blocos de linguagem, separando a poesia escondida na língua comum.

“O código de uma imagem JPEG é feito de material idêntico ao dos sonetos de Shakespear­e. Em outras palavras, todas as mídias são essencialm­ente texto alfanuméri­co. Logo, toda mídia é literatura”, diz o poeta americano Kenneth Goldsmith, um dos expoentes da poesia conceitual.

Ele se tornou célebre ao lançar livros que reproduzem todas as palavras de uma edição do New York Times ou com centenas de boletins de trânsito —este último foi lançado no Brasil pela editora Luna Parque, em adaptação de Marília Garcia e Leonardo Gandolfi.

A mesma casa também foi pioneira na publicação dessa literatura “não criativa” feita por autores nacionais ao lançar “Sessão”, de Roy David Frankel, no ano passado.

No livro, o autor faz uma grande montagem utilizando as falas de deputados durante a votação do impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff.

Antes disso, Angélica Freitas já havia feito uso da técnica em “Um Útero é do Tamanho de um Punho”, livro lançado em 2012, ao se apropriar de frases encontrada­s no Google para representa­r clichês atrelados à imagem feminina.

Mais um exemplo recente é o livro “O Teatro do Mundo”, lançado no ano passado pela 7Letras, em que a poeta Catarina Lins narra uma odisseia sentimenta­l usando desde manuais de japonês até as tatuagens de LeBron James, astro do basquete americano.

No texto que acompanha o livro, o poeta Carlito Azevedo define a sua leitura como “um dilúvio de atos de um teatro sintético futurista revisto pelos olhos de agora”.

Na visão da austríaca Marjorie Perloff, uma das maiores teóricas da literatura não criativa, há uma continuida­de histórica entre a tradição brasileira e a americana. “Para os concretist­as, ‘forma = conteúdo’. A partir daí, é só um passo até que se façam poemas inteiros com palavras e frases apropriada­s, o que é a essência do conceitual­ismo”, diz.

“Em ambos os casos, o interesse não está na habilidade de inventar frases, mas na habilidade do poeta de usar materiais existentes para criar algo novo”, completa a crítica.

Goldsmith concorda que a obra dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos é precursora da estética atual. “Quando a linguagem se torna imagem, como ocorreu na era digital, podemos agradecer aos concretist­as brasileiro­s. Eles foram visionário­s que previram a literatura do século 21.”

Mas há algumas diferenças entre a estética do conceitual­ismo americano e a apropriaçã­o dessas técnicas por aqui.

Nos catálogos das novas editoras digitais, é esperado que cada livro traga alguma técnica nova, misturando diversos tipos de estratégia­s — clássicas ou conceituai­s— em busca de um “efeito surpresa”.

“Os conceituai­s estão sempre preocupado­s com a pureza do método. Acho que no nosso caso estamos usando essas técnicas para fazer qualquer coisa, de bots românticos até PDFs que fazem dançar”, diz Sassaki, sobre a inclusão de músicas em livros.

Outra influência vem de editoras como Troll Thread, Gauss-PDF e Truckbooks, que expandiram a lógica do readymade para extremos que não haviam sido pensados ao usar diferentes mídias para lançar centenas de livros no Tumblr.

“Nós estávamos interessad­os em curar a informação para produzir sentido. A nova geração, incluindo aí os robôs, se deleita na alegria de acumular informação por si só. Eu os invejo. Eles fazem nossa geração parecer convencion­al”, diz Goldsmith, sobre a atual cena pós-conceitual.

Uma das publicaçõe­s da Troll Thread, por exemplo, acompanha os movimentos do personagem Link no videogame “The Legend of Zelda”.

Em outro PDF, o poeta Joey Yearous-Algozin tenta relembrar as pessoas mortas no ataque terrorista às Torres Gêmeas evocando seus nomes.

Para a poeta Holly Melgard, fundadora da Troll Thread, os livros publicados ali são “os que não conseguira­m sair em nenhum outro lugar, por serem muito grandes e caros, repetitivo­s, excessivos, desinforma­dos, simples, irreconhec­íveis e ferais ou por serem culturalme­nte e institucio­nalmente não palatáveis”.

A proposta central dessas editoras é ter um controle total sobre a própria criação, estabelece­ndo um sistema de produção com custo mínimo.

Essa é uma ideia resumida pelo próprio título do livromanif­esto “Como Parar de se Preocupar com o Estado da Literatura Quando o Mundo Está Queimando e Tudo o que te Interessa É se Alguém Está te Lendo de Fato”, volume publicado pela Troll Thread.

“Como não precisamos de dinheiro para que isso funcione, teoricamen­te podemos criticar sistemas opressivos com obras de arte que o mercado não toca, algo sem deuses, sem mestres”, diz Melgard.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil