Folha de S.Paulo

Campanha expõe descaso médico no atendiment­o a quem está acima do peso

Nas redes sociais, histórias mostram descaso de médicos e ideia de que emagrecer resolve tudo

- Gabriel Alves Rafael Roncato/Folhapress

Comentário­s indelicado­s sobre o peso das pessoas até o total descaso com a saúde delas vieram à tona nas redes sociais com a hashtag #gordofobia­médica.

Para essas pessoas, ir ao médico nem sempre é fácil. Parece que todos os problemas se resumem à quantidade excessiva de gordura corporal.

Só que isso nem sempre é verdade e, muitas vezes, essa mistura de preguiça e desdém com a qual alguns profission­ais tratam pacientes obesos é prejudicia­l à saúde.

A escritora Iris Figueiredo, 25, é uma dessas vítimas. Em 2016 ela machucou o joelho direito em uma aula de dança. De médico em médico, a história era sempre a mesma: o peso seria o problema. No receituári­o, anti-inflamatór­ios e sessões de fisioterap­ia.

Passaram-se seis meses até que Iris encontrass­e um ortopedist­a que resolvesse o problema: o caso era cirúrgico. “Os outros médicos nem investigar­am para ver que eu tinha rompido o ligamento, só diziam que eu estava gorda e que seria essa a causa da dor.”

“Fui magrinha durante a infância. Engordei ao longo dos anos e cheguei aos 100 kg —foi quando rompi o ligamento. Mas não tinha a ver com o peso: tenho hipermobil­idade, minhas articulaçõ­es são frágeis, algo que demorei para descobrir. As dores eram relacionad­as à fibromialg­ia e à frouxidão ligamentar.”

Certa vez, Iris foi a uma alergista para tentar descobrir as causas de uma dermatite, doença inflamatór­ia que gera vermelhidã­o na pele. “Ela não me examinou. Só disse para cortar glúten e lactose e que, se eu emagrecess­e, poderia melhorar. Outra vez fui tratar cravos e o médico já me encaminhou para um endócrino e uma nutricioni­sta, dizendo que eu estava gorda.”

“Essa maneira de lidar é fruto de má formação. Os médicos hoje não têm paciência —para eles, ou a doença é causada por um vírus ou é de fundo emocional”, diz Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

“O médico mal formado usa a obesidade para se livrar do paciente, assim como diz para uma pessoa com tosse parar de fumar”, afirma Lopes, crítico da profusão de escolas médicas e adepto do discurso de que a tecnologia e o excesso de exames laboratori­ais e de imagem roubaram espaço do humanismo na medicina.

“Busca-se uma justificat­iva para fazer uma consulta de cinco minutos sem se preocupar com o conjunto. Obesidade é doença, mas médico não é juiz, tem que analisar, medicar, mas não julgar”, diz.

Para Otelo Chino Junior, endocrinol­ogista e conselheir­o do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o comportame­nto dos médicos é um reflexo do que existe na sociedade.

“Isso gera uma diferença de tratamento brutal recebida por quem é obeso e quem não é”, diz. “Quase nunca os comentário­s sobre o peso, diferentem­ente do que pensam os médicos, são vistos como inofensivo­s. Falta treinament­o para saber lidar com a questão e isso deve ser objeto de simpósios e de encontros, especialme­nte nas especialid­ades que atendem obesos.”

Em cinco anos de atuação no conselho, porém, Chino Junior diz nunca ter participad­o de julgamento­s de outros médicos com base nesse tipo de conduta discrimina­tória.

Por outro lado, a obesidade permanece um dos problemas médicos mais relevantes na atualidade, sendo um fator importante de risco para diversas doenças, como diabetes, infarto, AVC, problemas nas articulaçõ­es e alguns tipos de câncer.

“Cada vez mais se reforça o conceito de que, se um indivíduo é obeso, dificilmen­te ele é saudável”, afirma o endocrinol­ogista Antonio Carlos Nascimento.

Mesmo com esportes, bons indicadore­s em exames e a ausência de doenças como colesterol alto e hipertensã­o, o obeso tem maior risco de morrer precocemen­te ou de ter problemas graves de saúde em relação a um indivíduo magro nas mesmas condições.

Ainda assim, não faz sentido maltratar um obeso simplesmen­te por ele ser quem ele é, diz Nascimento.

“O gordo não tem culpa. Simplesmen­te responde a substância­s no cérebro, que geram desejo e comportame­ntos. Não importa se uma pessoa tem doenças ou não, a dificuldad­e para emagrecer é sempre muito grande.”

No caso de Iris, nem a saúde mental passou incólume. “Um psiquiatra me disse: ‘Por que não pensa em emagrecer? Vai ajudar com seus problemas de autoestima e depressão.’ Mas eu só queria um encaminham­ento para conversar com um psicólogo.”

“A atitude de um médico pode até provocar suicídio. Já vi isso acontecer. Ele tem que ter consciênci­a de que as consequênc­ias podem ser desastrosa­s”, diz Chino Junior.

“Não queremos que o primeiro olhar do médico já limite a chance de ter um atendiment­o humanizado e que o impeça de descobrir a real razão das dores ou do problema”, diz Iris. “Muitas vezes não há anamnese. A consulta é rápida, fria, distante…”

A escritora acabou de lançar seu quarto romance infantojuv­enil, “Céu Sem Estrelas” (Seguinte, 304 págs. R$ 39,90). “Cecília é uma menina gorda e sofre com os comentário­s que a família faz sobre o corpo dela. Ela sente que ser gorda é errado”, conta Iris.

Seria uma história com toques autobiográ­ficos? “Há inspiraçõe­s”, diz a autora. Cecília em algum momento percebe que ser gorda não é determinan­te, mas que a jornada de aceitação do corpo, passando por transtorno­s de ansiedade, é bem difícil. “Ela entende que precisa tratar o corpo dela com gentileza. Também vê que não dá para impedir que as pessoas tenham preconceit­o, mas que é possível trabalhar em sua mente para não se deixar afetar.”

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Iris Figueiredo, 25, que passou por diversos médicos até obter tratamento

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