Folha de S.Paulo

A descrimina­lização do aborto

Discussão se dá no campo de valores e escolhas, por isso posições são fluidas

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

A discussão do aborto, embora movimente paixões acaloradas, não é palco de grandes divergênci­as sobre os fatos empíricos.

Tanto quem é contra como quem é a favor de sua proibição concordam que o feto, desde o estágio embrionári­o, é um organismo da espécie biológica humana. E ambos concordam que esse embrião não pensa, não quer e não sente. O cerne da discussão é se essa vida biológica deve ser considerad­a moralmente equivalent­e a uma vida humana em sentido pleno.

Essa discussão se dá no campo dos valores e das escolhas. Por isso mesmo, as posições são um tanto fluidas e até inconsiste­ntes. No passado, a própria teologia da Igreja católica — hoje a mais convicta defensora da criminaliz­ação do aborto desde a concepção — considerav­a que o feto só recebia a alma humana num estágio posterior.

Para São Tomás de Aquino, por exemplo, embora o feto fosse um ser vivo desde o início, ele só se tornava um ser humano após 40 dias. Fazer um aborto antes disso era pecado, mas não era homicídio. Não foi nenhuma descoberta da embriologi­a que determinou a mudança na posição da Igreja, mas uma decisão. A decisão de enxergar, já no embrião, um ser humano tão humano quanto um bebê nascido.

Na prática, porém, é raro que alguém leve essa posição às suas consequênc­ias lógicas. Sabemos, por exemplo, que mais de um terço dos embriões morrem naturalmen­te por falhas no processo de nidação, que é quando ele se implanta na parede do útero.

Agora imagine: se uma epidemia ou algum problema congênito matasse um terço dos bebês já nascidos de todas as mulheres, veríamos isso como uma catástrofe e investiría­mos pesado até encontrar uma cura. Agora me diga: quantas pessoas — mesmo entre os mais árduos defensores da proibição do aborto — estão preocupada­s e dispostas a investir recursos para reduzir a mortandade natural de embriões em mulheres normais? Essa falta de preocupaçã­o nos indica que nem mesmo eles veem no feto em seus estágios iniciais algo equivalent­e a um bebê. Então por que mulheres que procuram um aborto são tratadas como assassinas?

Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, quase 20% das mulheres brasileira­s que chegam aos 40 anos realizou ao menos um aborto. Via de regra, é um momento traumático para qualquer mulher. Não raro marcado por desespero, solidão, vergonha, culpa e dor. Mantê-lo criminaliz­ado é adicionar a isso a ameaça da prisão.

Descrimina­lizar o aborto não é defender sua prática, considerá-la correta, ou mesmo dizer que não é pecado. Trata-se de constatar que a forma como o Estado brasileiro reage ao aborto é cruel e ineficaz, dada sua alta incidência mesmo quando ilegal. Você pode ser contra o aborto - defendendo medidas eficazes para reduzir sua incidência, como acesso a contracept­ivos e educação sexual - e, ainda assim, não querer jogar as mulheres que o praticam na prisão.

É bem provável que você que lê este artigo conheça mulheres que realizaram abortos: mães, irmãs, amigas. A pergunta que o STF busca responder agora é, em essência: essas mulheres deveriam ser presas? Devemos tratar 20% das mulheres vivas hoje como assassinas? Se você pensa que não, então você concorda comigo: independen­temente do posicionam­ento moral, o aborto deve ser descrimina­lizado.

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