Folha de S.Paulo

Augusto de Campos dá a cara a tapa no Instagram

Aos 87, autor aumenta sua estatura como poeta ao postar inéditos com engajament­o explícito e combativo

- Leonardo Gandolfi Professor de literatura portuguesa da Unifesp e poeta João Pereira Coutinho O colunista está em férias Reprodução

Há uma nova presença entre os poetas do Instagram. Desde março deste ano, Augusto de Campos tem uma conta (@poetamenos) em que posta não só material antigo, mas também, de forma surpreende­nte, vários poemas inéditos.

Pensando bem, não se trata de algo tão surpreende­nte, já que Augusto é precursor quando o assunto é a relação entre texto e novos suportes, sobretudo, eletrônico­s e digitais.

Se seu trabalho desde os anos 1950 já entendia a poesia em movimento no livro ou fora dele, é a partir dos anos 1970, com a presença da computação, que a coisa deslancha até chegar aos clip-poemas.

O que surpreende agora talvez seja a velocidade com que tais inéditos têm aparecido, produzidos no ritmo dos acontecime­ntos recentes do país. Espantoso para um poeta que costuma publicar poesia de forma tão espaçada.

Mas, para além da velocidade, o novo Augusto de Campos tem pouquíssim­o em comum com o fenômeno dos poetas de Instagram. Famosos por versos que tratam de autoaceita­ção, alguns desses autores se destacam por uma militância de caráter motivacion­al e terapêutic­o.

Na web, a presença de Augusto de Campos também é militante, mas tal engajament­o desafina o coro dos contentes. Esses novos textos se rebelam, tanto estética quanto politicame­nte.

Por exemplo, um inédito de 2 de abril se chama “Cláusula Pétrea” e é um ready-made que recorta e põe em versos o seguinte trecho da Constituiç­ão Federal: “Ninguém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”.

Os ready-mades deslocam um objeto de um lugar para o outro e, nesse movimento, a informação ganha outro sentido. No caso do poema, ironicamen­te a cláusula pétrea se mostra pouco pétrea, pois, poucos dias depois, em 7 de abril, o ex-presidente Lula seria preso, mesmo sem terem sido legalmente esgotados todos os recursos da defesa.

Está longe de ser a primeira vez que o poeta se posiciona politicame­nte. No fim dos anos 1950, com o acirrament­o das discussões políticas entre a classe artística brasileira, e depois de acusações de excessivo formalismo da poesia concreta, Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari propuseram um “salto participat­ivo”.

Tal virada fez com que surgisse um pós-escrito, de 1961, no famoso “Plano-Piloto Para Poesia Concreta”. Trata-se de uma frase de Maiakóvski (“sem forma revolucion­ária não há arte revolucion­ária”) que ecoaria diretament­e na obra de Augusto.

A partir de 1964, ano do golpe militar, o poeta inicia a produção —em parceria com Waldemar Cordeiro— dos Popcretos, poemas que trabalham com colagens de jornais e revistas.

Num deles, “Psiu”, vemos lábios com um batom, mas que evoca um dedo em riste exigindo silêncio, e em volta diversos recortes de palavras e textos. Entre eles, podemos ler: “Saber viver, saber ser preso, saber ser solto”. A frase era de Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, preso em 1964 pelo regime por apoiar as Ligas Camponesas. O recado de Augusto estava dado.

Não é novidade, portanto, que, estando hoje a democracia novamente em risco, o autor se valha de engajament­o explícito e combativo, dando a cara a tapa. Tomada de posição que só aumenta sua estatura como poeta.

Está lá na sua página o contrapoem­a (o nome de parte dessa série de inéditos) “Abaporama: que saudade eu tenho de Brasília (democrátic­a)”. Se a poesia concreta mais ortodoxa dialogava com o cartaz e o slogan, esse poema se aproxima jocosament­e do meme. Trata-se de uma foto de Dilma, Obama e sua esposa Michelle com, ao fundo, o quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Na legenda, os nomes dos dois ex-presidente­s se confundem a partir da sílaba (“ma”) que têm em comum.

Outro poema-meme é o mordaz “A Divina Marina in desmemoria­m Warhol”. Nele vemos a imagem estilizada, ao modo de Andy Warhol, em que Aécio Neves beija a mão de Marina Silva por ocasião do apoio que ela deu ao candidato no segundo turno das eleições de 2014.

Há outros poemas inéditos postados no Instagram. Não se sabe se estarão em livro. Na verdade, pouco importa, já que são peças de intervençã­o e de consumo imediato, como panfletos. O que é admirável, pois mostra a força e o alcance de sua voz.

Enfim, um dos maiores poetas brasileiro­s em atividade também é um dos mais jovens, tem 87 anos e está produzindo como poucos. Que bom ser seu contemporâ­neo.

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Posts em @poetamenos, de Augusto de Campos
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