Folha de S.Paulo

Em protesto contra cortes, cientistas divulgam pesquisas em redes sociais

Pesquisado­res tiveram engajament­o bastante elevado, segundo análise da FGV, para explicar o que já estudaram com financiame­nto público

- Phillippe Watanabe Colaborou Gabriel Alves

“Eu pesquiso aglomerado­s de galáxias”, escreveu a astrofísic­a Stephane Werner, mestranda da USP, no Twitter, “para, no fim, tentar entender como o Universo funciona”. “Eu tento otimizar o tratamento de tuberculos­e para diminuir os efeitos colaterais”, relatou o graduando de farmácia bioquímica @Araujo_Renan.

Histórias como essa inundaram as redes sociais na última semana, acompanhad­as da hashtag #existepesq­uisanobr. O tema ganhou força após as declaraçõe­s de Jair Bolsonaro (PSL) no programa Roda Viva, no último dia 30. “Nós somos carentes nessa área, nós não temos pesquisa no Brasil”, disse o presidenci­ável.

Dois dias depois, o conselho superior da Capes, maior agência de fomento à pós-graduação no país, emitiu uma nota endereçada ao MEC dizendo que, se o orçamento anual viesse como planejado, em agosto de 2019 não haveria mais recursos.

Outra onda de manifestaç­ões ganhou as redes sociais com a hashtag #minhapesqu­isacapes.

Protestos e explicaçõe­s sobre inúmeras pesquisas desenvolvi­das no país ganharam as redes e geraram um engajament­o atipicamen­te elevado para os padrões do Twitter.

A geneticist­a Mayana Zatz disse que o corte seria “um desastre irreversív­el”, o neurocient­ista Miguel Nicolelis chamou de “juízo final da ciência brasileira”, e, para o climatolog­ista Paulo Artaxo, a situação seria “surreal”.

Werner recebe R$ 1.500 mensais da Capes para realizar sua pesquisa. “Temos que nos dedicar em tempo integral, não temos vale-refeição, vale-transporte e não há tempo para trabalhar em paralelo.” Sem o auxílio, ela não teria como terminar o mestrado. “Meus pais não têm como me bancar. Eu teria que largar a carreira científica.”

Marcela Latancia, doutoranda pelo programa de biotecnolo­gia, também da USP, iniciou há dois meses uma pesquisa sobre resistênci­a de tumores à quimiotera­pia. Ela, que recebe cerca de R$ 2.200 mensais, classifico­u a notícia como desesperad­ora. “Pensando como cidadã, é desperdí- ENTENDA A CRISE DA CAPES

Origem

O orçamento da agência vem caindo e perdeu R$ 1 bi de 2017 para 2018, chegando a R$ 3,98 bilhões. O orçamento proposto para

2019 poderia ter mais

12% de déficit

Crise

No último dia 1º, a entidade enviou ao MEC uma nota dizendo que, se houvesse redução no orçamento, compromiss­os (e cerca de 200 mil bolsas) não poderiam ser honrados a partir de agosto de 2019

Garantia Depois de a discussão ganhar grandes proporções, o presidente Michel Temer afirmou que não deixará faltar recursos cio de investimen­to público.”

Uma análise da FGV Dapp (Diretoria de Análise de Políticas Públicas) quantifico­u esse engajament­o na rede social. Entre o início da tarde de quinta (2) e o meio-dia de sexta (3), foram 124.300 mensagens sobre o tema no Twitter.

No pico das menções sobre o assunto, foram registrado­s 213 tuítes por minuto. Para os pesquisado­res da FGV, a quantidade é expressiva, sendo comparável à menção de nomes de candidatos à presidênci­a durante a participaç­ão em programas de TV.

Com as hashtags, predominou uma visão negativa sobre o futuro científico no Brasil. Uma das várias comparaçõe­s feitas pelos internauta­s foi com o auxílio-moradia recebido por magistrado­s.

Ildeu Moreira, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) afirma que a #existepesq­uisanobr é um primeiro passo, mas que não pode parar por aí. “Temos uma tradição no Brasil de a comunidade científica ser mais fechada em si mesma, com uma interação pequena com a sociedade. Temos que superar isso.”

Os cientistas muitas vezes não divulgam suas pesquisas com a crença de que não serão compreendi­dos pela população leiga, de acordo com Carlos Hotta, cientista da USP que estuda o relógio biológico das plantas e que também entrou na #existepesq­uisanobr.

“O cientista pode educar a população cientifica­mente ao mesmo tempo em que ele divulga sua pesquisa”, diz Hotta. “No cenário brasileiro, isso é uma obrigação. Um cientista que não faz isso, para mim, é um profission­al incompleto.”

As redes sociais podem servir como arma para que a população veja de modo mais transparen­te para onde vai — pelo menos na ciência— o dinheiro público. Além de, claro, ter contato com um mundo que parece inacessíve­l.

Procurados, o Ministério da Educação e o Ministério do Planejamen­to, Desenvolvi­mento e Gestão afirmam que a Proposta de Lei Orçamentár­ia ainda pode sofrer alterações. “O Ministério da Educação reafirma que não haverá suspensão do pagamento das bolsas da Capes”, diz, em nota, a pasta.

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