Folha de S.Paulo

À sombra da lei, socorrista­s ajudam argentinas a abortar

- Erick Dau

Alô?, atende a socorrista. Após alguns segundos de silêncio, as mulheres se justificam: “o preservati­vo estourou”, “a pílula não funcionou”, “o dispositiv­o falhou”: “Preciso fazer um aborto”.

Assim se iniciam a maioria das conversas entre mulheres grávidas e as ativistas do grupo Socorrista­s em Rede.

São feministas que auxiliam mulheres que querem interrompe­r uma gravidez na Argentina, cujo Senado vota nesta quarta (8) a descrimina­lização do procedimen­to.

A rede funciona desde 2012 e já ajudou mais de 8.000 mulheres a realizarem um aborto seguro. A ação das socorrista­s começa após serem acionadas por telefones que são divulgados nas cidades onde atuam.

As mulheres que pedem orientação são encaminhad­as a reuniões presenciai­s, onde encontram outras com intenção de abortar, mulheres que já fizeram abortos e as ativistas.

Nos encontros, recebem informaçõe­s básicas sobre o uso seguro da medicação abortiva, o remédio misoprosto­l, também conhecido no Brasil pelo nome comercial de Cytotec. A ingestão do medicament­o, considerad­o seguro pela OMS, ocorre nas próprias casas das mulheres.

Em 2016, 12% das mulheres assistidas precisaram de algum cuidado médico depois de 72 horas de ingestão. Nestes casos, a paciente é encaminhad­as a profission­ais de saúde “amigáveis”, que, além de prestar o cuidado médico, escutam seus casos.

“Nós, as socorrista­s, não realizamos abortos. Nós damos informaçõe­s sobre o uso seguro de medicação para abortar”, diz a ativista Julia Burton.

“Essa informação é pública, está em manuais da OMS, das Federações de Obstetríci­a e Ginecologi­a. É informação certificad­a por órgãos de saúde certificad­os. E a informação é um direito humano.”

O acompanham­ento das mulheres que realizam o aborto é parte fundamenta­l do ativismo —antes, durante e depois do procedimen­to.

“O socorrismo se dá em quatro momentos”, explica Nadia Mamani, que faz os acompanham­entos. “O primeiro é o telefonema, em que conversamo­s com essa mulher, que nos conta de sua decisão. Em geral é uma ligação com muita angústia. Depois nos reunimos com grupos em locais públicos, conversamo­s sobre seus medos.”

Quando elas adquirem a medicação, a rede acompanha por telefone o processo. “Isso as tranquiliz­a muito. E entre sete e dez dias depois do processo, realizamos um controle pós-aborto para saber se está tudo bem.”

Desde 2014 o grupo reúne dados sobre os acompanham­entos para pressionar politicame­nte o debate pela legalizaçã­o do aborto.

A prática mostra que um aborto na clandestin­idade nem sempre é inseguro, já que é exitoso na maioria dos casos.

“Em uma reunião, veio uma mulher de 35 anos que estava angustiada e perguntou à filha de 15 como podia fazer um aborto seguro. Foi a filha que disse ‘ligue para as socorrista­s’, e ela veio à reunião com a filha”, lembra Nadia.

“Foi muito impactante ver uma menina tão jovem acompanhan­do sua mãe. Ela fez o aborto em casa, junto da filha que levou biscoitos e doces para que ela se sentisse melhor.”

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