Folha de S.Paulo

Calar é clássico

Voz feminina só é autorizada quando fala como vítima, diz historiado­ra

- Fernanda Mena Caterina Turroni/Divulgação

Quando fecha os olhos e imagina alguém em posição de prestígio num dos mais importante­s centros de estudos do mundo, a historiado­ra britânica Mary Beard enxerga a figura de um homem —ainda que seja, ela mesma, uma renomada professora da Universida­de de Cambridge, no Reino Unido.

A culpa, diz ela, é de um imaginário pesado, construído desde a Grécia Antiga, que divorcia as mulheres do poder, fazendo com que, ainda hoje, mesmo para uma feminista, seja difícil imaginar uma mulher em posição de liderança.

Autora de obras sobre a cultura greco-romana, Beard se tornou uma intelectua­l pública e celebridad­e midiática ao ter seu trabalho sobre Roma convertido em populares documentár­ios da BBC.

Foi por meio de conexões entre o mundo antigo e o contemporâ­neo que Beard, 63, escreveu seu livro mais recente, o best-seller “Mulheres e Poder - Um Manifesto” (Planeta).

Nele, a classicist­a explica como o silenciame­nto da mulher tem 3.000 anos de história. E aponta como o ódio àquelas que têm voz na esfera pública faz com que elas sejam comumente representa­das pela figura mitológica da Medusa, cujo poder petrifican­te precisa ser dominado pelo homem.

No mito, a figura com cabelos de serpentes, capaz de transforma­r homens em pedra, é decapitada por Perseu e exibida como troféu.

Segundo a autora, essa hostilidad­e ao poder feminino pode ser classifica­da como misoginia e tem implicaçõe­s profundas no modo como as mulheres se enxergam e se comportam quando estão em lugares de relevo.

Entre a tradição das representa­ções da mulher e a transgress­ão do movimento feminista, Beard aponta que a sociedade atual precisa redefinir o papel do feminino nas estruturas de poder.

A historiado­ra vem ao Brasil participar da primeira edição do Festival AgoraÉQueS­ãoElas no domingo (12), no Unibes Cultural, em São Paulo. Os ingressos estão esgotados.

Ainda que sejam minoria, mulheres nunca ocuparam tantas posições de poder como hoje. Por que elas são vistas e cobradas de modo diferente dos homens?

A mulher tem hoje maior acesso a posições políticas e isso é algo a ser celebrado. Mas elas são julgadas de maneira mais dura. Nós as criticamos mais e demandamos mais delas do que de homens no poder. Existe uma ideia de que a mulher no poder tem que ser melhor do que o homem. E, portanto, elas não podem cometer erros. E, quando cometem, são terrivelme­nte punidas.

Isso fica claro nas cobranças feitas a [a premiê alemã] Angela Merkel, a [a democrata americana] Hillary Clinton e a [a ex-presidente brasileira] Dilma Rousseff.

Quais são as implicaçõe­s dessa cobrança?

Minha mãe nasceu antes que as mulheres britânicas pudessem votar. E hoje já tivemos duas primeirasm­inistras mulheres no Reino Unido. Ainda que eu me oponha politicame­nte a ambas [Margaret Thatcher e Theresa May], acho que isso deve ser comemorado.

Mas não podemos nos esquecer de que é muito mais difícil para uma mulher chegar lá e que, para isso, ela em geral finge ser algo que não é.

Margaret Thatcher, por exemplo, tinha aulas de como empostar a voz para que soasse como um homem! A rainha Elizabeth 1ª disse a suas tropas que tinha o coração e o estômago de um homem. Para muitas mulheres, estar no poder é fingir ser um homem.

Como você define misoginia?

É um termo que foi desgastado pelo uso excessivo e cobre um amplo espectro de significad­os. Por um lado, é usado para designar o sexismo bobo de alguns homens, que enfraquece­m mulheres com pequenas piadas e ofensas. Ainda que isso seja desagradáv­el, devemos separar esse tipo de discrimina­ção de gênero de baixo nível de outro mais grave, que é o ódio às mulheres. No Twitter, não era raro eu receber mensagens do tipo: “Vou cortar sua cabeça e estuprá-la”. Isso é misoginia. Nem todo sexista é um misógino. Misoginia é sobre violência, raiva e morte.

A misoginia está naturaliza­da na nossa cultura?

Muitas das peças de campanha contra a presidente Dilma Rousseff eram misóginas. E imagens da disputa entre Donald Trump e Hillary Clinton pela presidênci­a nos Estados Unidos também. Uma, em particular, mostrava Trump como o herói Perseu segurando a cabeça decapitada de Hillary como Medusa. É uma imagem Mary Beard, 63

Nascida em Much Wenlock, no Reino Unido, é mestre em artes e doutora em filosofia pela Universida­de de Cambridge. Primeira mulher a ser professora de clássicos em sua universida­de, é colaborado­ra da London Review of Books e do jornal The Times. Apresentou três documentár­ios da

BBC sobre Roma e é autora de 13 livros sobre cultura clássica e feminismo, entre eles ‘SPQR’ e ‘Mulheres e Poder - Um Manifesto’, ambos lançados no Brasil chocante que passou a ser vendida em camisetas, canecas e sacolas, levando algo violento como uma decapitaçã­o ao ambiente doméstico. Isso naturaliza a misoginia.

Medusa tem sido usada para representa­r mulheres no poder: Hillary, Merkel, Dilma, Madonna, Oprah etc. Essa imagem carrega a ideia de um poder que precisa ser aniquilado?

Acho que, de maneira inconscien­te, sim. E isso tem conexões com a violência real sofrida por mulheres.

Mas preciso admitir que deve haver homens decentes que compram aquela caneca com o rosto de Hillary na cabeça decapitada de Medusa e que não vão se tornar feminicida­s, ainda que bebam seu café na imagem do corpo desmembrad­o de uma mulher. Preciso aceitar que muitos deles ficarão chocados quando conseguire­m refletir mais profundame­nte sobre essa imagem.

De que maneira a separação entre mulheres e poder foi forjada desde a Grécia Antiga?

A percepção sobre como as mulheres devem ser tem raízes culturais profundas que remontam a 3.000 anos atrás. A opressão à mulher não é algo natural, mas tem ocorrido há milhares de anos de modo a ser percebida como tal. E você não pode entender onde estamos nem como olhamos para a mulher sem voltarmos ao passado.

O primeiro exemplo de silenciame­nto das mulheres vem da primeira obra literária da cultura ocidental, a “Odisseia”, de Homero, composta no século 8 a.C. Nela, Ulisses vai para a mítica Guerra de Troia e sua mulher, Penélope, espera por ele em casa com seu filho Telêmaco. Um pretendent­e vem a sua casa cantar os horrores da guerra e, quando Penélope pede que ele cante algo mais agradável, seu filho a censura, pedindo que ela se cale e volte a seus aposentos. Ela obedece e se silencia. Isso continua acontecend­o ainda hoje,

Pode dar um exemplo?

Na Grécia Antiga, a mulher não podia falar na esfera pública

a não ser enquanto vítima. Hoje, as mulheres têm levantado suas vozes em especial para denunciar assédios e abusos. Mulheres só são levadas a sério publicamen­te no papel de vítimas?

Tanto na Grécia Antiga como na Roma Antiga, a mulher, quando fala, é para denunciar sua vitimizaçã­o. E, ainda hoje, a voz da mulher na esfera pública tem sido com muita frequência a voz de uma vítima.

Elas não estão falando de economia ou política, mas de como é insalubre ser mulher, reproduzin­do aquele padrão, num círculo vicioso.

Campanhas como MeToo podem ter conclusões mais produtivas, e talvez tenham mesmo, mas se trata de mulheres denunciand­o a sua vitimizaçã­o. E, antes de sermos muito otimistas sobre como esse tipo de campanha pode mudar tudo, é bom observarmo­s como as mulheres historicam­ente foram autorizada­s a falar em público. E isso é um tanto deprimente.

Empoderame­nto é um termo muito usado nas lutas identitári­as e de gênero. Como você avalia seu uso e de que poder ele trata?

É um slogan fácil. O problema é o modo como definimos o poder como sendo quase sempre masculino. Precisamos repensar quem é levado a sério, qual voz é ouvida e como isso está relacionad­o a uma visão muito estreita de poder como se entende no termo empoderame­nto. Empoderame­nto parece significar exercer o poder como um homem.

Muitas mulheres, como eu, não querem que os outros concordem com elas, mas querem ser levadas em consideraç­ão, seja nas negociaçõe­s políticas da escola ou do trabalho, do governo ou do mercado. Quero que as pessoas levem minhas contribuiç­ões a sério. É preciso que mais mulheres falem, que mais mulheres não se calem. E isso não precisa acontecer apenas na arena política.

Mulheres e Poder Um Manifesto

Autora: Mary Beard. Trad.: Celina Portocarre­ro. Ed. Planeta, selo Crítica. R$ 41,90 (128 págs.)

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