Folha de S.Paulo

Os sentimento­s do poste

- Ruy Castro

Oscar Wilde se queixava de que as pessoas viviam dizendo pelas suas costas as verdades mais terríveis e absolutas a seu respeito. Bem, isso foi naquele tempo. Hoje, dizem-se as mesmas verdades pela frente e em letra de forma, e ninguém mais se ofende. Chamar alguém de poste, por exemplo.

Deixou de ser desaforo classifica­r de poste uma pessoa que é escolhida para ocupar o lugar de outra, na ausência temporária desta, e não só por ser leal e confiável, mas principalm­ente por ser passiva, anódina, irrelevant­e —ou seja, incapaz de ofuscar o titular. É como receber um atestado de desadmiraç­ão vindo dos seus próprios pares.

Tento me colocar na pele de uma pessoa escalada para esta triste função. Como se sentirá ao saber que é isso —que não tem personalid­ade ou vontade própria— que seus companheir­os pensam dela? A que níveis sua ausência de autoestima terá chegado para aceitar o papel de ectoplasma de si mesma e, ainda assim, estar pronta a desocupar o banquinho assim que for solicitada? Terá havido um dia em que essa pessoa alimentou objetivos pessoais e lutou por eles?

Um poste, como se sabe, é feito para sustentar uma lâmpada, mas esta só se acende ou apaga a partir de comandos emanados de uma usina longe ou perto dali. No caso do poste humano, some-se a isto o fato de que, ao abrir a boca, ele só poderá emitir palavras e pensamento­s elaborados na cabeça do titular, como na velha arte do ventriloqu­ismo. Nos anos 30 e 40, havia ventríloqu­os famosos, como o americano Edgar Bergen, pai da estrela Candice Bergen, e o brasileiro Baptista Junior, pai das cantoras Linda e Dircinha Baptista. A diferença é que seus bonecos eram de pau.

Um dia, inevitavel­mente, o poste passa a acreditar que gera sua própria energia e se volta contra seu mentor. É a sua única chance de recuperar o autorrespe­ito e superar a humilhante condição a que o reduziram.

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