Folha de S.Paulo

O estado de mal-estar social

Um relato sobre direitos humanos no Brasil ao papa

- Paulo Sérgio Pinheiro Ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos (2001-2002, governo FHC) e ex-coordenado­r da Comissão Nacional da Verdade (2013)

Roma, 40 graus. Na praça de São Pedro, filas intermináv­eis de turistas esperam para visitar a basílica. Entramos pelo portão de entrada no Vaticano para a Casa Santa Marta, onde mora o Papa Francisco. Na porta da casa, um carabinier­i e um guarda suíço. “São a delegação brasileira? ”, abrem a porta.

Já dentro, um funcionári­o nos dirige a uma sala. Ficamos ali alguns minutos com a jurista Carol Proner, Marinete Silva (mãe de Marielle Franco) e a pastora Cibele Kuss, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs. O papa abre a porta, com um envelope branco na mão, e nos convida a sentar em roda, sem nenhum funcionári­o em volta.

Nada do que pretendia dizer ao papa deve ser grande novidade. O jornal L’Osservator­e Romano, o órgão oficial do Vaticano, dois dias antes informava que o número de brasileiro­s em pobreza extrema passou de 5 milhões a 10 milhões.

Tento pegar a deixa das notícias do dia. Em curto espaço de tempo, a proteção dos direitos humanos sofreu dramático enfraqueci­mento no Brasil. A consequênc­ia prática é um estado de mal-estar social.

Direitos econômicos e sociais restringid­os pela PEC do teto e pela reforma trabalhist­a. Direitos civis e políticos ameaçados pelo enfraqueci­mento do Estatuto do Desarmamen­to, o reempodera­mento dos militares, o retorno da Justiça Militar para crimes comuns de militares e prisões de professore­s em universida­des federais. Proteção do meio ambiente, dos povos indígenas e a luta contra o racismo praticamen­te abandonada­s. Mudanças profundas nas políticas públicas jamais legitimada­s antes por eleições.

Sublinho os riscos criados quando uma agenda de inclusão social, econômica e política —como a estabeleci­da pela constituci­onalidade de 1988 e pela política de Estado de direitos humanos— é abandonada. Nesse mesmo dia, sete relatores da ONU alertavam para a gravidade dos retrocesso­s em série nos últimos dois anos, culminando com o primeiro aumento da mortalidad­e infantil em mais de duas décadas de progresso.

A brutal e ainda inexplicáv­el morte de Marielle Franco, representa­da ali no diálogo emocionant­e com o papa por sua mãe, é o símbolo mais forte da violência e da fraqueza da democracia no Brasil. Essa violência tem mensagem clara: falar pelos marginaliz­ados implica grave risco. O Brasil, em 2017, foi o país do mundo com o maior número de assassinat­os de defensores de direitos humanos.

É neste contexto que o Brasil caminha para uma eleição na qual um dos principais candidatos, o ex-presidente Lula, poderá ser iniquament­e excluído. Ele vem sendo sistematic­amente silenciado pela interferên­cia da Justiça, que assumiu o papel de protagonis­ta político. As forças conservado­ras predominan­tes no Judiciário asseguram a proteção aos grupos políticos governista­s afetados por denúncias.

Superar a crise vai levar tempo. Reconstitu­ir o espaço de diálogo e a confiança nas instituiçõ­es do Estado são agora tarefas ainda mais difíceis do que antes. Que inspiraçõe­s buscar? A tensão e o retrocesso não são privilégio­s brasileiro­s. Difícil encontrar um país em que não se tenham discutido ou implementa­do restrições de direitos. Igualmente, proliferam as vozes do ódio.

Para o momento mais imediato, é essencial condenar todas as formas de violência e censura. Nesse contexto, relembro como extremamen­te relevante a condenação absoluta, pelo papa, da pena de morte.

Passados 50 minutos, o papa distribui rosários (que estavam no envelope branco) a todos, recolhe os relatórios e livros que recebeu e diz: “Vou passar ao secretário de Estado”. Arrisco: “Vai ser uma trabalheir­a”. Sobraçando tudo com um dos braços, ele se despede de nós e sai como entrou, sozinho, sem ninguém para ajudar ou abrir a porta.

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Troche

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