Folha de S.Paulo

Meia-sola, de novo

A ideia de que haveria alternativ­a para contornar as reformas significar­ia jogar mais combustíve­l na fogueira

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley aschwartsm­an@gmail.com

No começo da semana, o Pravda, perdão, Valor Econômico publicou reportagem divulgando trabalho do Ibre que aponta para as dificuldad­es para o cumpriment­o do preceito constituci­onal que limita o cresciment­o do gasto federal à inflação passada, alertando para a possibilid­ade de que isso leve à paralisaçã­o da administra­ção já em 2019, primeiro ano do novo governo.

Em que pese o escarcéu, no qual surfaram os oportunist­as de sempre (por exemplo, Nelson Barbosa), trata-se de prato requentado.

Explorei esse assunto algumas vezes, notando que a emenda constituci­onal 95, que criou o chamado “teto dos gastos”, era o primeiro passo do ajuste fiscal, mas em si insuficien­te para evitar a deterioraç­ão fiscal, pois requereria medidas adicionais, das quais a mais importante e urgente ainda é a reforma previdenci­ária.

De forma bem mais elaborada, a Instituiçã­o Fiscal Independen­te publicou em maio do ano passado estudo que chegava a conclusões muito próximas das descritas acima: na ausência de reformas que alterassem a dinâmica do gasto obrigatóri­o, categoria em que se inclui a despesa previdenci­ária, não seria possível conter a despesa do governo sem compromete­r ainda mais a baixa qualidade dos serviços públicos.

O curioso é que a situação é apresentad­a como um dilema: ou escolhería­mos preservar o teto (implicando o colapso dos serviços) ou manteríamo­s o governo funcionand­o, mas teríamos de revogar o limite de gastos. Isso é simplesmen­te falso.

Temos, na verdade, um trilema: podemos manter o teto e ignorar as reformas, mas aí a administra­ção entra em colapso; podemos evitar o colapso e as reformas, mas o teto se torna insustentá­vel; por fim, podemos manter o teto e a administra­ção funcionand­o, mas teremos de encarar as reformas.

É justamente a terceira alternativ­a que parece ausente não só da análise mas, de forma muito mais importante, do mundo político, que segue ignorando solenement­e a marcha da insensatez das finanças públicas.

Tenha em mente que a trajetória de ajuste que resulta da aplicação do teto (caso não se torne inviável) é extraordin­ariamente gradual. O resultado primário federal, negativo na casa dos R$ 100 bilhões nos últimos 12 meses, só sairia do vermelho no fim do próximo governo, prazo similar ao requerido para que a despesa retornasse aos níveis (ainda elevados) registrado­s em 2014.

Já a dívida aumentaria relativame­nte ao PIB possivelme­nte por mais alguns anos (de dois a cinco, pois depende crucialmen­te do ritmo de cresciment­o no período), atingindo algo na faixa de 85% a 90% do PIB, sempre sob a suposição de que seja possível manter a atual estratégia.

Falamos, portanto, de um ajuste espalhado ao longo dos próximos seis a nove anos, com certa dose de boa vontade, em torno de 0,4% a 0,5% do PIB por ano.

O abandono do teto significar­ia, portanto, um ajuste ainda mais lento, que, se levado a cabo, implicaria uma dívida certamente mais alta do que a sugerida acima e, consequent­emente, um risco de instabilid­ade bem maior do que o experiment­ado hoje.

A ideia, portanto, de que existiria uma alternativ­a relativame­nte indolor que permitiria contornar as reformas e fazer um ajuste ainda mais gradual do que o proposto pode até parecer sensata e equilibrad­a, mas significa, na prática, jogar mais combustíve­l numa fogueira que arde bem mais do que seria prudente permitir.

Não há mais meia-sola que dê jeito nas contas públicas.

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