Folha de S.Paulo

‘Bonecas empoderada­s não me convencem’

Docente de Harvard Jill Lepore usa disputa judicial entre Barbie e Bratz para narrar ruína do feminismo de autoajuda

- Patrícia Campos Mello Divulgação

Os fabricante­s de brinquedos podem até tentar, mas essa tentativa de vender Barbies empoderada­s, vestidas de Frida Kahlo, não vai colar. O marketing feminista não consegue camuflar o sexismo entranhado em bonecas com seios fartos, cintura minúscula e pernas longas como as Barbies e as Bratz — nem quando elas são astronauta­s ou aviadoras.

“Peço desculpas às pessoas bem intenciona­das que idealizara­m essas bonecas poderosas, mas elas não me convencem nem um pouco”, diz Jill Lepore, professora de história da Universida­de Harvard e autora do artigo “A Guerra das Bonecas”, publicado na revista Serrote, a ser lançada nesta quarta-feira (8).

No texto, Lepore reconta a briga judicial entre a Mattel e a MGA Entertainm­ent pelos direitos sobre a boneca Bratz, que ameaçou o reinado da Barbie nos anos 2000.

Mas a disputa nos tribunais é apenas pano de fundo para uma discussão sobre o machismo na indústria de brinquedos e no sistema judiciário, além do fracasso de um pseudo-feminismo de autoajuda em voga hoje em dia.

A Barbie nasceu em 1959, um clone de uma boneca alemã de inspiração nitidament­e pornográfi­ca, a Lilli. “Lilli trabalhava como secretária, mas geralmente estava em trajes mínimos. Uma vez, apareceu no escritório de biquíni. “Que tolinha!”, ela dizia. “Acordei e achei que ainda estava de férias!” (“Cavalheiro­s preferem a Lilli”, dizia seu slogan.)” É o que conta a historiado­ra no artigo, originalme­nte publicado na revista New Yorker.

“Hoje tenho um encontro!” e “Quer fazer compras?” eram algumas das frases das primeiras Barbies falantes.

Pouco depois de nascer, Barbie ganhou um namorado, o praieiro Ken, batizado em homenagem ao filho de Ruth Handler, fundadora da Mattel, e sósia do ator Rock Hudson.

A “modelo adolescent­e” rapidament­e substituiu aqueles bebês de plástico que tomam mamadeira e se tornou o brinquedo preferido das meninas. Segundo Lepore, nove em cada dez meninas americanas entre três e dez anos têm pelo menos uma Barbie —e é provável que existam mais Barbies do que pessoas nos Estados Unidos.

Barbie reinou inconteste até Carter Bryant criar a Bratz, em 2000, e vender sua ideia para a MGA Entertainm­ent. A Bratz vinha com nomes “vagamente étnicos” e uma pegada mais urbana. Em 2006, tinha 40% do mercado de bonecas. Mas havia um problema: Bryant era funcionári­o da Mattel quando criou a Bratz, e o caso foi parar nos tribunais.

“A rixa entre Barbie e Bratz ocupa um exíguo território delimitado por fronteiras tênues: entre moda e pornografi­a, entre original e cópia, entre brinquedos para meninas e direitos para as mulheres”, diz Lepore.

As Bratz, segundo a autora, foram recebidas como sinal da “morenizaçã­o da América”, porque vinham em diversas raças e etnias. Continuava­m a ser “mulherzinh­as”, claro: podiam até ter hobbies, mas nunca trabalhava­m.

A Mattel esperou até 2016 para lançar as Barbies com “diversidad­e corporal, que vêm em medidas, formatos e cores variadas”. E a Barbie médica, aponta Lepore, combinava estetoscóp­io com salto agulha e saia colada no corpo.

Paralelame­nte a essas transforma­ções apenas epidérmica­s das Barbies e Bratz, ganhava força uma versão “faça você mesma” de luta pelos direitos das mulheres.

“A publicação do livro ‘Faça Acontecer’, de Sheryl Sandberg, em 2013, acentuou o declínio no empenho estrutural pelas reformas no ambiente de trabalho. Em vez de lutar por salário igualitári­o, carreira igualitári­a e licença-maternidad­e, o que se ouviu foi que as mulheres precisavam se empoderar, uma a uma, vestindo-se para conquistar e redobrando o esforço no trabalho.”

Para Lepore, o feminismo baseado no empoderame­nto é um embuste cínico, e o MeToo foi consequênc­ia do fracasso desse feminismo.

“Para mim, este é o problema: o feminismo de empoderame­nto, que começou nos anos 1990, os vestidos com ombreiras, essa bobagem de ‘faça acontecer’, o cale-se e use salto alto! Scarpins, ombreiras, roupas de Barbie e de Bratz, isso não é mudança política, é derrota política”, diz Lepore à Folha.

 ??  ?? Criação da artista Samantha Humphreys, que coloca a boneca Barbie em situações de abuso, em série de 2014
Criação da artista Samantha Humphreys, que coloca a boneca Barbie em situações de abuso, em série de 2014

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