Folha de S.Paulo

Eva viu a uva

No Chile, são as mulheres que fazem alguns dos melhores vinhos do país; conheça um roteiro para degustá-los

- Luiz Horta

Minha viagem era para provar vinhos, mas uma constante foi aparecendo enquanto eu avançava pelas estradas do país: excelentes vinhos, atreviment­os, líquidos fora do lugar comum, feitos por mulheres. Algumas das melhores garrafas que provei eram criação de jovens enólogas cheias de entusiasmo.

Uma curiosidad­e do Chile, onde há produtores gigantesco­s, é permitir que jovens se atrevam a experiênci­as nas grandes companhias, em vez de serem, por décadas, apenas o sub do sub do enólogo até poderem fazer um vinho. Nem todos são enólogos chefes, mas opinam e têm bastante liberdade criativa.

É assim na vinícola Santa Rita, com Teresita Ovalle. Ela me mostrou, ainda sem rótulos, os “field blends” —feitos a partir de castas de uva misturadas. Nesse caso, elas são colhidas e fermentada­s juntas, sem que se procure saber muito o que são.

Anotei o nome divertido que ela deu a essa aventura, “field blends atômicos”.

O vinho branco é uma mistura de moscatel, semillon, corinto, sauvignon blanc e outros elementos. As uvas são fermentada­s com a casca, que dá corpo e alguns taninos, em barricas abertas e com as leveduras do meio ambiente (nem vou tentar explicar tudo isso, mas é só doideira).

O Floresta tinto, por sua vez, uma mistura de uva do país com carmenère, é floral, delicado, fora da curva.

Foram os dois vinhos que escolhi para o jantar, no meio de clássicos. E que jantar.

O antigo casarão da vinícola, cercado por jardins, é monumental e luxuoso, e um tapete gobelin enfeita a sala de jantar. Há três fantasmas conhecidos no lugar, mas nenhum apareceu para mim, infelizmen­te.

O que me deu um susto foi o encontro com Andrea Léon, enóloga da Lapostolle, com um de seus vinhos da série Collection, um sémillon com torondel em que se forma uma flor —ou seja, tem oxidativos de Jerez. De um frescor maravilhos­o, talvez tenha sido o mais atrevido vinho que provei na viagem toda. Foi bebido com ostras, e espero ansiosamen­te que seja engarrafad­o e chegue ao mercado.

Ela me apresentou um syrah igualmente de grande estirpe, mantendo o estilo franco-chileno da empresa, um pouco da personalid­ade do Rhône no vale de Colchagua.

Essa degustação foi em outro cenário, na praia de surfistas de Punta Lobos, com estranhas areias negras vulcânicas, um balde cheio de gelo, garrafas e um barco com ostras e outros frutos do mar. Da formalidad­e do jantar à francesa para uma beach party.

Na Viña Veramonte foi Sofia Araya quem me mostrou seus vinhos. Destaquei o chardonnay Ritual. Longe daqueles chardonnay­s carregados de madeira, delicado, foi um dos melhores dessa uva que provei na viagem. Um estilo mais para o frescor e a vontade de beber, sem o pesadão do uso excessivo de carvalho.

Na Undurraga, Pilar Diaz apresentou os T.H. (linha terroir hunter) em que trabalha como coenóloga. Lá, o Carignan de Maule me cativou; com aromas florais, é muito fino, uma rara mistura de potência com elegância.

Já Viviana Navarrette, da Viña Leyda, é responsáve­l por alguns dos melhores pinots noirs que provei, lindos sauvignons blancs e (mais um) syrah estupendo.

Aí a cena era no campo. Visitei dezenas de calicatas na viagem. Calicatas são recortes fundos no terreno, algumas têm mais de três metros de profundida­de, onde os produtores descobrem o perfil geológico de suas terras. Ali, você vê as raízes entrando na argila, no calcário, na areia, o que for o perfil do terreno. Isso permite, cada vez mais, saber o que e onde plantar.

E, finalmente, fiz uma degustação maravilhos­a na Concha y Toro, em que se prova cada uma das sete parcelas de cabernet sauvignon e uma de cabernet franc que irão compor o blend final do Don Melchor 2017.

A coenóloga Isabel Mitarakis, assistente direta de Enrique Tirado, mostrou como nasce o ícone: você prova cada vinho separadame­nte, e tenta modificar as quantidade­s de cada um (um é mais doce, outro mais duro na boca, um terceiro mais delicado e por aí vai). Não adianta, seu Don Melchor nunca será o que eles decidiram depois de uma centena de misturas.

A chamada “experiênci­a Don Melchor”, essa aula inesquecív­el, vai ser aberta ao público no futuro. É outro ambiente faustoso, um casarão senhorial, com muita pompa. Os brasileiro­s predominam: 80% do público turista é daqui, pois além da marca ser muito conhecida por nós, a vinícola fica praticamen­te dentro de Santiago.

Estive no Chile por 14 dias, viajei mais de 2.000 km e provei 298 vinhos. Minha última visita ao país tinha sido em 2011, e pensava saber o que se passava lá. Os vinhos mais importados no Brasil são chilenos, por isso tinha a empáfia de me julgar atualizado sem sair de casa. Que erro brutal.

O primeiro choque positivo foi ver como a uva carménère, que nunca foi minha favorita, virou uma beleza. Não era implicânci­a, a casta era cheia de piracina (aquele cheiro e gosto de pimentões verdes).Os produtores chilenos insistiram na sua uva, e agora ela oferece vinhos refinados e deliciosos a todos os preços.

O segundo foi ver como eles aprenderam a lidar com seu clima privilegia­do. O Chile é um país comprido, como se vê no mapa, vai do calor intenso do deserto do Atacama às geleiras da Terra do Fogo.

O Pacífico de águas geladas oferece um vento frio excelente para as uvas, os Andes formam um paredão de defesa ao leste e a cordilheir­a da costa a oeste.

Toda essa geografia, com seus vales, é espetacula­r para os vinhedos e permite que se plante de tudo, de temperamen­tais pinots noirs e rieslings a raçudos cabernets sauvignons e uvas mediterrân­eas, como carignan e marsanne.

A syrah foi a uva que mais me espantou. Os syrahs chilenos vêm aí com toda sua qualidade. Não são pesadões nem alcoólicos, mas delicados e com traços tão locais como nunca vi, exceto talvez no vale do Rhône, na França.

Outra coisa a destacar: os produtores chilenos entenderam o uso de madeira nos seus vinhos. Adeus sucos de carvalho, bombas de fruta madura enjoativas.

Por essa diversidad­e de terrenos e climas, há o mais forte movimento de vinhos orgânicos e naturais no continente. E há uma coisa que me encantou, pequenos produtores se reúnem em associaçõe­s para divulgar seus vinhos juntos, como a MOVI.

Mas os grandes, como Concha y Toro, justamente pelo tamanho, empregam dezenas de enólogos e dão a eles liberdade criativa. Alguns dos vinhos mais saborosos provei das mãos de jovens enólogos que podem inventar dentro de uma grande empresa.

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Keiny Andrade/Folhapress Degustação de vinho branco com ostras no restaurant­e Jacarandá, em São Paulo
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