Folha de S.Paulo

Ele sempre foi meu mestre imaginário, mesmo antes de nos conhecermo­s

- Roberta Sudbrack Chef do restaurant­e Sud, o Pássaro-Verde

Nós sempre teremos Paris...

Engraçado, hoje escrevi um texto com esse título. Era sobre um roteiro muito particular da cidade luz, praticamen­te meu segundo lar.

Sou uma cozinheira muito determinad­a. Minha formação é clássica, mas não formal. Durante alguns anos tive receio de revelar que sou autoditada. Hoje digo sorrindo: sou autodidata!

Durante uns três, quatro anos, antes de dar conta de fazer tudo direitinho no meu primeiro emprego —chefiar a cozinha do Palácio da Alvorada, com uns 20 e poucos anos—, aceitei o desafio pessoal de aprender a cozinhar.

A cultura francesa sempre me encantou, o culto absoluto ao ato de comer, o ritual, o respeito aos ingredient­es. E Joël Robuchon sempre foi meu mestre imaginário. Comprei todos os seus livros, devorei todos os seus saberes.

Tornei-me uma cozinheira disciplina­da e muito rígida com o padrão, a qualidade, o respeito e a hierarquia. No Palácio da Alvorada, minha equipe era toda de militares, um prato cheio para colocar em prática os ensinament­os do mestre imaginário que todos diziam ser durão.

Durante anos dialoguei com ele. Questionei, mostrei que tinha aprendido as lições, frequentei seus restaurant­es e tremi só de pensar na possibilid­ade de encontrá-lo.

Certo dia tocou o telefone no meu restaurant­e. Era do 50 Best: “A senhora foi eleita a melhor chef da América Latina, parabéns”. Confesso que não sou de me pautar por prêmios, agradeci, mas disse que não sabia se poderia comparecer à premiação.

Acabei indo, dediquei este prêmio, assim como todos os outros, à minha musa inspirador­a: minha avó Iracema. Voltei para o meu restaurant­e e a vida seguiu normal.

Outro dia, tocou o telefone novamente. Era alguém que fazia parte da equipe do meu mestre imaginário. Joël Robuchon soube que você virá à França e gostaria de lhe conhecer.

Dessa vez as pernas tremeram do momento em que disse “oui” até a hora em que coloquei os pés no seu laboratóri­o, onde ele me esperava sorridente, com uma garrafa de champanhe gelado.

Passamos horas agradáveis, ele falou muito mais do que eu, seja porque o seu francês era muito mais fluente... Seja porque eu simplesmen­te não podia acreditar no que estava acontecend­o!

Não consegui dizer para ele que estudei tudo, todas as técnicas, todos os gestos, toda a minúcia, todas as bases, toda a essência da cozinha com apenas dois mestres: ele e Antonin Carême.

Não consegui dizer quantas vezes repeti seu purê de batatas para chegar perto do que ele desenhou com perfeição. Não consegui dizer que os cubos neuróticos do meu tartare de abóbora têm origem no seu perfeccion­ismo.

Não consegui dizer quantas vezes viajei a Paris apenas com o objetivo de jantar no Jamin. Na minha opinião, o seu grande templo de todos os tempos. Não consegui dizer para ele o quanto o amava.

Só consegui dizer: merci. Merci, chef. O banquete no paraíso será incrível daqui em diante com você e Carême conduzindo o piano. E, afinal, nós sempre teremos Paris... Boa viagem!

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Fotos Reprodução Roberta Sudbrack com o chef

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