Folha de S.Paulo

Taxas de aeroportos ameaçam mostras de Van Gogh, Picasso e Warhol no Brasil

Taxas ameaçam gerar apagão nas artes, barrando mostras de Van Gogh, Picasso e Warhol no país

- Isabella Menon e Pedro Diniz

são paulo e amsterdã Entre uma garfada e outra no salmão servido num jantar em Amsterdã, o diretor do Museu Van Gogh, Axel Rüger, enrubescia em silêncio ao ouvir do repórter o assunto “exposição no Brasil”. Uma das pessoas mais influentes na arte, Rüger parece descrente que a mostra do impression­ista planejada para daqui a cinco anos no Masp saia do papel.

Mesmo com a boa vontade dos dois lados da negociação para montar a maior mostra do holandês no Brasil, todos estão de mãos atadas.

Uma nova interpreta­ção por parte das concession­árias dos aeroportos de que obras de arte não têm valor cívico-cultural para a nação e que, por isso, precisaria­m ser sobretaxad­as no armazename­nto, ameaça não só a vinda de Van Gogh, último e mais vistoso capítulo da batalha travada desde a última SP-Arte, em abril, mas de todas as exposições estrangeir­as marcadas para os próximos cinco anos.

Não é a primeira vez que Van Gogh quase chega a São Paulo. O Instituto Tomie Ohtake previa para 2019 uma mostra do artista, porém, o valor que seria desembolsa­do pelo empréstimo das telas não coube no orçamento. Agora, com as novas taxas cobradas pelos aeroportos que recebem a maior parte das obras importadas, o caro virou exorbitant­e.

Guarulhos, em São Paulo, Viracopos, em Campinas, e Galeão, no Rio de Janeiro, passaram a cobrar uma taxa de 0,75% sobre o valor da obra — antes, cobravam R$ 0,15 pelo quilo da peça guardada. A mudança ocorreu após o reajuste das tabelas de preço estipulada­s pelo governo, em 2017.

De uma hora para a outra, as concession­árias entenderam que obras de arte não se encaixam numa tabela que prevê taxa pequena para eventos científico­s, filantrópi­cos, esportivos e cívico-culturais, segmento no qual a arte sempre esteve. Ela passou, então, a se enquadrar em tabelas onerosas.

Esse modelo de cobrança, segundo diretores de museus e centro culturais, fará o Brasil voltar à periferia do circuito.

O presidente do Masp, Heitor Martins, calcula que, se trouxesse as 25 obras de Van Gogh que deseja para a mostra de 2023, teria de pagar R$ 28 milhões —o custo anual de operação do museu— só para guardar essas peças avaliadas em R$ 3,75 bilhões. Na regra antiga, gastaria R$ 5.000.

Martins diz ainda que outra mostra, a da alemã Gego, em 2021, pode não acontecer devido ao imbróglio, que vem obrigando instituiçõ­es a recorrerem à Justiça para cumprir acordos com estrangeir­os.

“O país vai na contramão da história e, colocando esses obstáculos, só reforça seu isolamento cultural”, desabafa.

Outra mostra com 300 obras de nomes como Picasso, Rembrandt e Warhol no Tomie Ohtake foi adiada. As peças viriam do Albertina, museu de Viena forçado a rever sua programaçã­o por causa do Brasil.

Ricardo Ohtake, diretor da instituiçã­o, conta que entrará com uma liminar para não pagar R$ 350 mil por armazenage­m, valor pedido pela nova taxação. Com esse documento, o custo cairá para R$ 800.

“É uma vergonha para o país. Trocamos seis vezes o plano alegando problemas técnicos. Quando expliquei que era por causa das taxas, [os austríacos] gargalhara­m, achando que estava escondendo algo.” Se as regras não mudarem, ele diz, “é melhor todos os museus fecharem as portas”.

Não sem antes sofrer saias justas, como a que o Instituto Moreira Salles passou ao trazer as imagens do fotógrafo Irving Penn do Metropolit­an.

Ao chegarem, o museu foi taxado em R$ 82 mil. O único jeito de se livrar da tarifa era esperar uma liminar. Para isso, as obras dormiriam no aeroporto, o que foi vetado pelo museu nova-iorquino. Na segunda leva de fotografia­s, com o mandado de segurança, a remessa saiu por R$ 200.

A Bienal de São Paulo, no entanto, deixou que as primeiras obras a chegar para sua próxima edição ficassem no aeroporto. Era isso ou teria de arcar com R$ 720 mil em vez dos R$ 2.500 pagos após liminar.

“O novo aeroporto internacio­nal do Brasil será o do Chile ou o da Argentina”, diz o produtor Marcello Dantas. Visando driblar as altas taxas que poderiam ser cobradas pelas obras do artista Ai Weiwei, alvo de uma retrospect­iva na Oca, em outubro, as peças virão do Chile de caminhão.

Mas o problema está longe do fim. Há dois dias, diretores da concession­ária GRU Airport se reuniram com Marcio Candido, despachant­e especializ­ado em logística de transporte de bens de culturais, para discutir uma saída.

“Eles dizem que cívico-cultural é um evento relacionad­o à pátria”, diz Candido. Dessa forma, insistem que obras não têm “valor patriótico” e que a Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, precisa esclarecer o termo “cívico-cultural”.

Mas assessores dessa agência do governo dizem que não cabe ao órgão interpreta­r a expressão. A concession­ária GRU não se manifestou até a conclusão desta edição. Segundo a Secretaria da Aviação Civil, destrincha­r essas dúvidas pode demorar até um ano.

O Ministério da Cultura e o Ministério dos Transporte­s criaram um grupo para discutir o tema. O ministro da Cultura, Sergio Sá Leitão, teme que o impasse contamine projetos na Lei Rouanet.

“Estaríamos subsidiand­o as receitas das concession­árias com os recursos dos contribuin­tes”, afirma o ministro.

A produtora cultural Ana Helena Curti também participou das primeiras reuniões em Brasília. Ela chama de loucura o entendimen­to de que exposições não seriam cívicocult­urais. “Se a cultura do país não é cívica, o que pode ser?”

Na visão dela, “a arte briga contra o tempo, porque conseguir liminares é caro e produtores pequenos não aguentaria­m os custos do trâmite”.

Também enfrentand­o dificuldad­es financeira­s, concession­árias, como a de Viracopos, que entrou com pedido de recuperaçã­o judicial, continuam cobrando altas taxas. A empresa entende que exposições têm fins lucrativos por cobrar entrada do público.

A Rio Galeão, por sua vez, afirma respeitar o entendimen­to sobre o que é evento cultural, por isso, não cobrou a taxa maior pelas obras da mostra “100 Anos de Arte Belga”, em junho. Porém, as da SP-Arte, em abril, foram considerad­as pela empresa como objetos de cunho comercial.

Sob condição de anonimato, uma funcionári­a disse que, se Van Gogh baixasse no Rio, passaria pagando a menor taxa.

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‘Noite Estrelada’, de Vincent Van Gogh
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Gravura ‘Electric Chair’ (1971), de Andy Warhol, que integra a seleção do Albertina Museum, de Viena
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Fontes: Dietl. Cotação de R$ 4,35 por cada euro; R$ 4,85 por cada libra esterlina e R$ 3,75 por cada dólar

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