Folha de S.Paulo

Adoramos assumir culpas das nossas supostas identidade­s

Nossas suportas identidade­s não precisam coincidir com nossas motivações

- ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série PSI (HBO)

Nos anos 1970, em Paris, não havia como se posicionar num debate sem receber a questão: “Mais d’où tu parles?”, de onde você fala? E isso sobre qualquer tema que fosse.

Cada um devia se perguntar quem estava “realmente” falando pela boca dele. Seguindo as ideias da época: 1) você fala “eu penso que xyz”; 2) o “eu” que diz que pensa xyz é apenas o sujeito da frase “eu penso”, uma espécie de ilusão gramatical, que PARECE ser o lugar de onde sai a declaração; 3) atrás desse “eu” de “eu penso”, há outro sujeito, eventualme­nte ignorado por quem fala: é ele, de fato, que pensa xyz, sem que o “eu” de “eu penso” sequer se dê conta disso.

Em outros termos, ao tomarmos a palavra, não conhecemos direito o próprio lugar de onde falamos —ou melhor, des- conhecemos o agente que fala pela nossa boca. Somos divididos e escondemos (inclusive de nós mesmos) uma parte grande de nossas motivações.

A partir dos anos 1980 e 90, a política das identidade­s, nascida nos EUA, apoderou-se da pergunta “de onde você fala?”.

“De onde você fala?”, nos anos 1970, evocava a complexida­de indefinida de nossas motivações. Hoje, a mesma pergunta parece se satisfazer com as identidade­s que estão na cara —tipo, você é homem ou mulher, hétero ou homo ou trans, branca ou negra, bonito ou não, rica ou pobre etc., e portanto é de lá que você fala, quer queira quer não queira.

É como se os grupos aos quais pertencemo­s social, histórica e geneticame­nte (nossas “identidade­s”) fossem a origem essencial de nossas motivações (escondidas ou não) e, portanto, constituís­sem uma espécie de viés inevitável.

Por exemplo, posso ser feminista, mas não deixo de ser homem; posso achar qualquer racismo uma idiotice, mas não deixo de ser branco; posso ser comunista, mas não deixo de ser burguês —e essas coisas todas que eu “não deixo de ser” colocam em questão o valor do que eu digo. Seja qual for nossa ideia ou militância, seríamos sempre uma quinta coluna de nossas identidade­s.

Essa dúvida (ou crítica) pode ter uma utilidade política, mas o fato é que as identidade­s às quais parecemos pertencer não coincidem necessaria­mente com nossas motivações.

A mente é complexa. Tem proletário­s que defendem políticas econômicas de direita porque, eles dizem, vai que eles ganham na Mega-Sena. Assim como há homossexua­is que defendem sua própria discrimina­ção. Interrogan­do a variedade das motivações, aliás, eis um clássico, para se divertir: a música/poesia de Giorgio Gaber, “Qualcuno Era Comunista” (https:/ bit.ly/2Mou8lH).

Na minha história, a política das identidade­s e a pergunta “de onde você fala?” se cruzaram num estranho debate na New School de Nova York, no começo dos 1990 ou fim dos 80. A decana do departamen­to onde eu ensinaria era uma mulher branca que publicara livros seminais sobre o novo feminismo e, antes disso, sobre o racismo nos EUA. Isso não a impedia de se opor à ideia de considerar a raça (ou o gênero) como critérios para escolher o corpo docente do departamen­to. Acusada de dever sua opinião à cor de sua pele, ela declarou (de jeito proposital­mente chulo e chocante) sua preferênci­a sexual por homens negros. O que deixou a plateia estupefata e abriu, para mim, uma série de reflexões inconclusi­vas.

Se eu, homem ou mulher, transo com negros, o que isso diz sobre minha relação com minha “identidade” branca? Será diferente se eu preferir transar passivamen­te ou ativamente? Os donos de escravos que iam para a senzala para comer eram mais ou menos “brancos” do que aqueles que iam para ser comidos?

Falando de escravos, aliás, outra ideia forte da política das identidade­s é a das culpas que cada um carregaria consigo por causa das suas identidade­s.

Pareceria fácil objetar: como um branco chegado ao Brasil nos anos 1940 seria “culpado” pela escravatur­a no Brasil? Como um muçulmano de hoje seria responsáve­l pela pirataria no Mediterrân­eo? Mas, de fato, adoramos assumir as culpas (ou os “direitos”) das nossas supostas identidade­s — provavelme­nte porque adoramos qualquer coisa que alivie nossa solidão.

Aqui, a psicanális­e toma a direção oposta à da política das identidade­s, pois uma cura psicanalít­ica, em tese, serve para nos permitir de não ser apenas, neuroticam­ente, o fruto dos grupos onde nascemos, membros de uma família, de uma nação, de uma raça…

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Mariza Dias Costa

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