‘Quase morri em um aborto no Brasil’, diz ativista argentina
A argentina Dora Barrancos, 77, quase morreu ao fazer um aborto clandestino no Brasil nos anos 1970.
Ela acabara de chegar a Belo Horizonte, onde viveu exilada com o marido por oito anos durante a última ditadura em seu país (1976-1983). Tinha três filhas pequenas, a caçula com um ano. “Não tinha condição de ter mais um filho naquelas circunstâncias”, diz.
Quando chegou à clínica, encontrou um ambiente tão precário que achou que estava no lugar errado. “Na época, as mulheres de classe média iam para São Paulo ou Rio para abortar. As condições em Belo Horizonte eram dramáticas. Fizeram sem anestesia. E um tempo depois tive uma hemorragia brutal”, lembra.
Hoje, Dora, que é socióloga e historiadora feminista, é ativista pró-descriminalização do aborto na Argentina. Pesquisadora-chefe do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica, foi uma das profissionais a defender, em audiência pública, argumentos pelo projeto de lei que legaliza a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana.
Dora já havia realizado um aborto em seu país, em 1977. Lá foi diferente, conta. “Tínhamos uma rede, sabíamos quais eram os lugares bons.”
No Brasil, o marido, médico, acompanhara o caso de uma paciente que morreu por complicações de um aborto clandestino em Mariana (MG).
“Ela chegou ao hospital gritando e morreu pouco depois. Mulheres pobres passam pelo procedimento em condições deploráveis. Aquilo foi muito marcante para ele.”
E foi ele que levou sua mulher imediatamente ao hospital quando ela começou a sangrar após sair da clínica em Belo Horizonte. Diferentemente de outras pacientes, que recebem ameaças de serem denunciadas ao buscarem ajuda, ela foi bem atendida. “Foi o que me salvou.”
Dora não se arrepende. “Não é uma página que alguém vire com facilidade, mas estou longe de me vitimizar. Estava claríssimo que eu não poderia ser mãe em tal circunstância.”
A argentina conta que se tornou feminista no Brasil, após o assassinato da socialite Ângela Diniz pelo companheiro com quatro tiros na cabeça, em 1976. “Vi uma entrevista do advogado do marido dela dizendo que a estratégia da defesa ia ser ‘muito simples’: legítima defesa da honra. Aquilo para mim foi uma comoção, o que ele disse e a forma como ele disse”, lembra.
A historiadora vê grande diferença na luta pela descriminalização do aborto na Argentina e no Brasil: a dimensão maciça do movimento lá.
“Essa quantidade de mulheres nas ruas e se colocando no debate é algo que ainda não se vê no Brasil. Acredito que essa maré possa contagiar os países vizinhos.”
Dora decidiu vir a público sobre seus abortos no fim dos anos 1990. “Sei como é, sei a densidade da decisão. Isso me torna intimamente ligada a cada mulher que vive isso.”