Folha de S.Paulo

Será que ‘postes’ têm gratidão?

Iván Duque será o Haddad colombiano?

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Leio na revista Semana a coluna de María Jimena Duzán, célebre jornalista colombiana, em que ela fala da posse de Iván Duque na Presidênci­a, na terça (7). Logo no primeiro período, o texto me remete a Luiz Inácio Lula da Silva.

Explico: María Jimena trata o ex-presidente Álvaro Uribe, padrinho político de Duque, como “presidente eterno”. Lembrei imediatame­nte da convenção do PT no sábado (4) em que um vídeo sobre os cem dias da prisão de Lula mostrava uma militante gritando: “Você é e sempre será nosso eterno presidente”.

Esse “eterno” parece ser um bom carimbo para populistas dos mais diferentes matizes. Lembro-me que, muitíssimo­s anos atrás, Luiz Carlos Bresser-Pereira escreveu uma coluna para a Folha decretando a morte do populismo.

Contestei em outra coluna, na qual dizia que o atestado de óbito desse tipo de político me parecia prematuro. Vistas as coisas com a perspectiv­a que o tempo permite, acho que acertei. Tanto que BresserPer­eira agora é um defensor apaixonado de Lula, um caudilho populista de raça.

Parêntesis: não uso populismo/populista com conotação necessaria­mente negativa. Há populistas nefastos, mas há aqueles que apenas tratam de atender demandas populares. Se o fazem bem ou mal, de maneira sustentáve­l ou não, é outra discussão.

No caso de Lula, posso até citar um ortodoxo inoxidável, Horst Köhler. Cruzei com ele em evento na Embaixada do Brasil em Paris, quando ele dirigia o Fundo Monetário Internacio­nal. Lula era o convidado de honra e Köhler o definiu como “um socialista moderno”.

Para ser sincero, não sei bem o que é “socialista moderno”, mas suspeito que Köhler estava se referindo ao fato de que o primeiro período Lula foi marcado pela prudência macroeconô­mica, o que deslumbrou os que esperavam um “socialista antiquado”.

Fecho o parêntesis e volto à coluna de María Jimena, que trata de outro ponto que remete ao Brasil de Lula, do PT e de Fernando Haddad.

Escreve a colombiana: “Não exagero ao dizer que esta é a primeira vez que um presidente eleito assume o poder sem ser o centro gravitacio­nal de seu futuro governo”.

Alusão ao fato de a sombra de Uribe estar por trás de Duque, tanto que a revista trata sua posse como “o dia em que o uribismo voltou ao poder”.

Minha dúvida é se o jornalismo brasileiro dirá de Haddad, seja como candidato, seja se for eleito presidente, que ele não é o centro gravitacio­nal da candidatur­a ou do governo, se houver governo Haddad.

Como candidato, não pode escapar do papel de “poste” de Lula. Se não teve votos nem para ir ao segundo turno na eleição municipal em São Paulo, a lógica manda dizer que não os terá, com seu próprio nome, na presidenci­al.

Mas se Lula conseguir eleger outro “poste”, aí não sei, não, de quem será o protagonis­mo. Aquele palácio, aquela cadeira presidenci­al, aquela faixa, aquela caneta —ah, que sensação de poder transmitem. E o poder raramente tem parentesco com gratidão.

Vale, pois, acompanhar os primeiros cinco meses de Iván Duque, o “poste” de Uribe, até a posse no Brasil para ver a relação entre criador e criatura. Um espelho do que ocorrerá no Brasil se Haddad ganhar?

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