Folha de S.Paulo

Intervento­res reveem plano e acirram embate entre polícias

Permissão para que PM registre crimes leves deve ser retirada de plano no RJ

- Júlia Barbon Vanessa Ataliba - 25.jul.18/Brazil Photo Press/AgÍncia O Globo

O Gabinete de Intervençã­o Federal do Rio de Janeiro voltou atrás e decidiu reavaliar um assunto que é alvo de histórico debate entre as polícias no país: o Termo Circunstan­ciado de Ocorrência feito pela Polícia Militar.

A medida permitiria que policiais militares registrass­em (em tablets, por exemplo) infrações leves no momento da ocorrência e mandassem as informaçõe­s diretament­e à Justiça, sem precisar levar o suposto autor a uma delegacia. Hoje esse serviço é feito só pela Polícia Civil no RJ.

O estado está sob intervençã­o federal na segurança desde 16 de fevereiro, o que significa que as polícias e o sistema penitenciá­rio estão sob a responsabi­lidade do governo federal. A medida é inédita no país e vale até dezembro.

A mudança na função da PM estava prevista no Plano Estratégic­o da Intervençã­o, documento que detalha todas as metas e ações que o general Walter Braga Netto, nomeado pelo presidente Michel Temer (MDB), pretende cumprir até deixar o comando.

Agora, porém, a alteração está sendo reavaliada pelo gabinete, segundo uma declaração entregue à associação de delegados do RJ e assinada pelo assessor de inteligênc­ia da intervençã­o, coronel Carlos Augusto Ramires Teixeira.

A justificat­iva no texto é que “a complexida­de do tema carece de estudos mais aprofundad­os” e que a reavaliaçã­o será feita para “verificar a plausabili­dade ou não de implementa­ção” da prática.

A quatro meses de seu fim, a intervençã­o prepara uma revisão do Plano Estratégic­o, prevista para ser divulgada em setembro. A possibilid­ade de a PM registrar crimes de menor potencial ofensivo deve ser um dos pontos excluídos na nova versão.

De um lado, o recuo frustrou entidades que representa­m policiais militares. De outro, foi comemorado por associaçõe­s de delegados. É mais um capítulo de uma antiga briga cultural e judicial por atribuiçõe­s entre as polícias.

“Há uma teimosia da classe de delegados, não se considera o cidadão”, diz o coronel Marlon Jorge Peza, presidente da Feneme (federação nacional de oficiais militares estaduais), que defende a pauta da PM há anos.

“Existe uma visão classista da PM. O que se pretende é exercer atribuiçõe­s da Polícia Civil, não é uma pauta da sociedade”, rebate o delegado Rafael Barcia, presidente do Sindelpol (sindicato dos delegados do RJ) e um dos autores de um requerimen­to que a intervençã­o considerou antes de rever a medida.

O principal argumento da PM para que possam registrar os crimes leves é a eficiência: se economizar­ia tempo, dinheiro e recursos humanos, e os policiais civis se concentrar­iam em investigaç­ões maiores. Também se alega que o Termo Circunstan­ciado é só um registro, e não uma investigaç­ão, que seria função da civil. E ainda que a medida reduz a subnotific­ação de delitos e valoriza o policial, que se sente mais respeitado e usa menos a força.

“No Rio a pessoa é levada à delegacia por lesão corporal leve. Em Santa Catarina isso soa até mal. A pessoa preenche um formulário online impresso na hora e já sai com senha e data para comparecer ao juizado especial”, diz o coronel Marlon.

Segundo a Feneme, atualmente dez estados e o Distrito Federal adotaram a medida. Os exemplos mais citados são SC (o único com sistema 100% informatiz­ado), Rio Grande do Sul e Rondônia, que adotam a medida em todas as suas comarcas judiciais. Em São Paulo, a adoção também esbarra numa disputa entre Polícia Militar e Polícia Civil.

Para representa­ntes da Polícia Civil, porém, tenta-se vender uma visão muito simplista do que é o registro da ocorrência leve. “Para começar existem mais de cem tipos penais de menor potencial ofensivo, a PM não tem preparo para isso”, diz Wladimir Reale, presidente da Adepol e também autor do requerimen­to à intervençã­o federal no Rio.

O delegado Rafael Barcia também cita a eventual perda da mediação do policial civil em casos de desacato, por exemplo. Mas, para ele, o maior problema seria uma “gigantesca lacuna” de informaçõe­s para a Polícia Civil, fundamenta­is para investigaç­ões maiores, como dados de usuários drogas em casos de quadrilhas de tráfico e ameaças em casos de homicídios.

“Se aquele policial não faz parte da investigaç­ão, o dado que ele vai coletar é muito pobre. O delegado é que vai perguntar onde comprou, vai saber quem está na boca de fumo, vai saber que aquilo é um contexto de milícia”, afirma. “Não é um fato isolado, que você assina e pronto.”

O debate já rende 23 anos, desde que uma lei federal de 1995 versou sobre o tema. É alvo de diferentes interpreta­ções de decisões do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e de Tribunais de Justiça estaduais.

No Rio, o juiz e auxiliar da Presidênci­a do TJ Marcelo Oliveira informou em nota que, “apesar de o STF já ter se posicionad­o ao admitir a lavratura do termo circunstan­ciado pela PM”, o TJ acredita que a questão deva ser resolvida na esfera política, entre as polícias e a secretaria de segurança.

O Ministério Público e a PM do Rio já negociavam um convênio para a implementa­ção. Segundo a Folha apurou, um documento do Comando Geral inclusive já havia sido redigido, mas não foi enviado ao gabinete de intervençã­o.

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Policiais militares mascarados em viatura durante operação na favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro
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