Estreante se embrenha no terror em ‘O Animal Cordial’
Diretora Gabriela Amaral Almeida, que estudou com Tarantino, lança 1º longa
Tem gente que, para se formar em literatura comparada, estuda os poeta parnasianos. Já a baiana Gabriela Amaral Almeida comparou os filmes “Carrie, A Estranha” (1976), de Brian de Palma, “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick, e “O Cemitério Maldito” (1989), de Mary Lambert, com seus respectivos livros originais. Todos do mestre do terror, Stephen King.
Questão de gosto. Assim como fazer de seu primeiro longa o primeiro slasher brasileiro dirigido por uma mulher, sendo slasher um subgênero dos filmes de terror no qual um psicopata caça um grupo de pessoas e vai matando uma a uma, geralmente com o auxílio das mais variadas ferramentas. Exemplo clássico: “Sexta-Feira 13”.
“O Animal Cordial” não traz nenhum assassino mascarado, mas um simpático (inicialmente) Murilo Benício no papel do dono de um restaurante. Até que dois ladrões invadem o local no fim da noite e as coisas degringolam.
“Passamos 21 dias numa casa nos Jardins, filmando a história em ordem cronológica”, conta a diretora. A filmagem aconteceu em agosto de 2015 e, depois disso, Gabriela engatou um segundo projeto que estava em andamento, “A Sombra do Pai”, com Julio Machado (de “Joaquim”).
Com este, participou de um laboratório com outros sete cineastas em Sundance, nos EUA, e teve assessoramento de Quentin Tarantino, Robert Redford e Ed Harris, entre outros.
“Tarantino me ajudava a dizer mais das cenas com menos elementos. Já Redford circulava sem parar. É o projeto do coração dele. Sabia o roteiro dos oito projetos na ponta da língua. Dizia para a gente não se apegar ao roteiro; a ouvir os outros.”
Quanto à literatura comparada, Gabriela disse que não houve conclusão na dissertação: “Hitchcock pegava livros pulp de má qualidade e elevava a fruição dessas obras na tela. Mas a construção de Stephen King já tem uma voz muito boa”. De causar arrepios.
CRÍTICA O Animal Cordial **** *
Brasil, 2017. Direção: Gabriela Amaral Almeida. Elenco: Murilo Benício, Luciana Paes, Camila Morgado. 18 anos. Estreia nesta quinta(9)
Inácio Araujo
A primeira reação pode ser de desconfiança: um filme de suspense cujo argumento tem como base a onda de assaltos a restaurantes que aconteceu (acontece ainda?) em São Paulo? É tão fácil sair daí um desses roteiros que já nascem mofados, marcados por um naturalismo dos anos 1930... Com Murilo Benício? De novo? Mais uma interpretação preguiçosa, relaxada...
Bem, o fato é que não demora para as expectativas se inverterem. O dono do restaurante, Inácio (Benício), e a garçonete Sara (Luciana Paes) conversam atrás do balcão a respeito dos hábitos de um freguês. Experimentamos uma estranha familiaridade com a situação, mas não sentimos que os atores estejam imitando profissionais do ramo.
Essa sensação é reforçada um pouco depois, quando vemos Inácio se desdobrando em mesuras para agradar os clientes, com aquela máscara de simpatia tão característica. Pensamos: não é mesmo imitação. Existe algo de verdadeiro aí.
Quase todo o restante do filme ajudará a reforçar essa ideia: desde o casal pedante que chega quase na hora de fechar a cozinha com exigências extravagantes até o assalto propriamente dito.
O que vem a seguir confirma o que havia de melhor na expectativa criada pelas primeiras cenas. Não estamos diante de bons burgueses violentados pelas armas de malfeitores. Mas também não estamos frente a pobres desempregados que, por necessidade e sem traquejo, invadem o restaurante apenas para sobreviver mais uns dias.
Gabriela Almeida Amaral dispensa essas convenções. Em vez disso, lança o espectador em uma espécie de microcosmo onde as máscaras caem ao mesmo tempo em que se desenha a tragédia.
Assim, vemos Inácio aproveitar um descuido dos assaltantes e acertar um tiro certeiro em um deles. É quando começa a cair a máscara dos personagens. A de Inácio antes —e mais do que todos.
Em vez do servil restaurateur que ensaia diante do espelho as caras e palavras com que supõe seduzir um critico que virá dali a dois dias, vemos um homem capaz de reagir com vigor a um assalto.
Não é só ele nem é só isso que acontece. Depois de acertar o assaltante, Inácio não chama nem ambulância nem polícia. A partir daí, as reações são não raro surpreamericanos endentes. Seria possível dizer que o filme nos leva ao íntimo dos personagens, mas não é o caso: não há íntimo, porque não há psicologia envolvida.
As reações são inesperadas, animais como os personagens. Sara, por exemplo, em vez da funcionária eficiente que aparentava ser se mostra logo pessoa tomada por uma ambição que o tempo mostrará ora desmedida ora francamente insana.
Para mostrar a transformação desses seres cordialmente hipócritas não será o caso de evocar nem Marx nem Freud. É antes do lado de Georges Bataille que as coisas caminham: do lado dessa proximidade entre morte e prazer.
Isso está na cozinha: no coelho decepado e depois servido à mesa. Mas está na sequência de sexo entre Sara e Inácio: é banhados em sangue que eles se amam, numa das mais originais cenas de sexo do cinema nos últimos tempos e, certamente, uma das mais intensas e mais belas.
Ao mesmo tempo em que controla muito bem as intensidades, as cores e sons de seu suspense, a diretora-roteirista sabe levar seus atores com muita precisão.
Se Luciana Paes volta a se afirmar como um rosto digno de suceder Glauce Rocha, Murilo Benício cria um personagem como em seus primeiros tempos (pré-novelas, pré-filmes insignificantes), enquanto Irandhir Santos também é tirado da zona confortável de boa parte de suas atuações (faz um cozinheiro gay, tão incisivo quanto sem trejeitos inúteis).
“O Animal Cordial” é um filme com capacidade de chegar facilmente a um público amplo e de agradá-lo como, no passado, William Wyler com “Horas de Desespero” (1955).
Pois é do registro do thriller em um só local e com sequestros que se trata (bem clássico, portanto). A questão é saber se, com a legislação cinematográfica torta que existe no Brasil, isso poderá se tornar ao menos possível.
Virgens Acorrentadas *****
EUA/Brasil, 2018. Direção: Paulo Biscaia Filho. Elenco: Elizabeth Maxwell, Kelsey Pribilski, Ezekiel Swinford. 16 anos. Estreia nesta quinta (9)
Sérgio Alpendre
No submundo do cinema de terror, um dos maiores trunfos que um diretor pode ter é a liberdade. Não que seja uma liberdade total. Afinal, o baixo orçamento implica em severos limites de produção.
Mas há a possibilidade de se arriscar mais, e até de fazer coisas que se estivessem num longa de alto orçamento soariam falsas. Um diretor inteligente, auxiliado por um bom argumento, pode extrair algo interessante de uma história pífia com produção barata, apoiando-se apenas nessa liberdade.
É o caso de “Virgens Acorrentadas”, primeiro longa internacional do diretor curitibano Paulo Biscaia Filho, conhecido no underground brasileiro por seus filmes de terror sanguinolentos.
Filmado em Austin, no Texas, e com produção e elenco em grande parte, é um longa que surpreende por trazer um sopro de invenção dentro da pobreza estética que apresenta com certo orgulho (porque terror classe Z que se preze tem de se orgulhar de ser barato e tosco).
Se por um lado a direção sofre com o baixíssimo orçamento (e talvez com os próprios códigos do subgênero), por outro, a narrativa vai para lados bem interessantes, mesmo que parte de sua trama possa ser adivinhada facilmente por quem costuma ver filmes desse tipo.
A trama explora com sucesso considerável a metalinguagem. Um roteirista de cinema à margem de Hollywood, e de qualquer possibilidade de sucesso, decide ele mesmo, após um pesadelo, produzir e dirigir um longa metragem de terror. Sua namorada o ajuda de perto, e alguns amigos se solidarizam na produção.
Ao conhecer um diretor de filmes de terror com mais experiência, acaba desenvolvendo uma espécie de parceria, sem saber que esse diretor experiente é na verdade um realizador de “snuff movies”, ou seja, filmes com mortes e sangue reais.
Do subgênero de jovens acorrentadas vamos então ao subgênero da casa com assassinos, e nossos heróis precisam desafiar os inimigos com as armas que têm. E o espectador verá: há armas de todas as espécies.
E sobram citações de clássicos do “gore”. A mais explícita é a do diretor Herschell Gordon Lewis, pai do subgênero no cinema, inaugurado em 1963 com “Banquete de Sangue”. Mas há muitas outras citações, que servem como piscadelas para o público.
É fácil apontar cenas mal dirigidas, ou dirigidas com afobação, assim como atuações, digamos, amadorísticas. Mas tudo isso é parte do charme de um gênero que, com bom orçamento, costuma fracassar na estética e nas soluções narrativas.
Não se trata da falácia de criticar um filme pelo que ele pretende ser. Mesmo porque, isso mal temos como saber. Trata-se apenas de entender as regras do jogo e aceitar que alguns desses filmes toscos podem ser mais inventivos do que aqueles que se prendem pela masmorra das premiações e do prestígio autoral.
E assim dá para curtir essa brincadeira descompromissada, que conta com um final sagaz como raros nesse tipo de filme. Desde, claro, o espectador goste de ver sangue espirrado na tela.
Ao mesmo tempo em que controla muito bem as intensidades, as cores e sons de seu suspense, a diretora-roteirista sabe levar seus atores com muita precisão