Cineasta escocesa encena violência com astúcia narrativa
Performance rendeu a Joaquin Phoenix o prêmio de melhor ator em Cannes
CINEMA Você Nunca Esteve Realmente Aqui **** *
(You Were Never Really Here). Reino Unido/França/EUA, 2017. Direção: Lynne Ramsay. Elenco: Joaquin Phoenix, Judith Roberts, Ekaterina Samsonov. 16 anos. Estreia nesta quinta (9)
Cássio Starling Carlos
Muitos filmes exploram a violência como grande atração. Poucos filmes usam a sanguinolência para provocar repulsão. “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” experimenta jogar uma forma contra a outra para saber o que isso pode provocar nas nossas cabeças.
Sua diretora, a escocesa Lynne Ramsay, é uma cineasta rara. De 1999, quando foi detectada com “O Lixo e o Sonho”, até agora fez apenas quatro longas. Ela é rara também porque consegue escolher estilos incomuns para contar histórias de abandono, solidão e traumas.
Esta imprevisibilidade potencializou o impacto de “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” no Festival de Cannes do ano passado. O júri presidido por Pedro Almodóvar consagrou o longa como melhor roteiro e um inevitável prêmio de atuação para o equilíbrio de tensão e contenção de Joaquin Phoenix.
Ele interpreta Joe, um assassino de aluguel sociopata envolvido no resgate de Nina, garota sequestrada e explorada por uma rede obscura de pedófilos. O personagem de Phoenix evoca o Travis Bickle de “Taxi Driver”, outro sujeito marcado por traumas que chafurda em poças de sangue. E, na primeira cena dele com a mãe, a diretora parodia “Psicose”.
Tais referências não se resumem à típica homenagem cinéfila, pois elas também marcam um retorno a filmes que redefiniram os rumos de uma estética da violência, tipo consolidado de representação que a diretora busca perverter.
A obscuridade psicológica de Joe mantém o personagem sempre confuso para nós, inviabilizando a identificação ou a repulsa. Refém de algum trauma, que pode ter sido na guerra, na infância ou em ambos, ele é tanto um sujeito bruto quanto frágil, assassino frio e vítima de um indeterminado complô.
Esta dubiedade organiza a forma como Ramsay encena a violência, ali presente e quase sempre fora do nosso campo de visão, uma escolha que ironiza o modo tão masculino de filmar jorros de sangue como se fossem ejaculações.
Mesmo quando mostra cabeças explodindo a diretora usa uma astúcia narrativa para inverter o sentido da cena. Assim, ela usa o clássico tema do assassino em série para questionar por que temos prazer em ver gente morrer.
Vidas à Deriva *****
(Adrift). EUA, 2018. Direção: Baltasar Kormákur. Elenco: Shailene Woodley, Sam Claflin. 12 anos. Estreia nesta quinta (9)
Marina Galeano
Pode-se dizer que o cineasta Baltasar Kormákur é chega- do num filme de sobrevivência em meio a catástrofes naturais. Depois de “Sobrevivente” (2012) e “Evereste” (2015), o diretor islandês leva às telas a dramática saga de um jovem casal surpreendido por um furacão em alto-mar.
Inspirado em fatos reais, assim como os anteriores, “Vidas à Deriva” novamente coloca o público diante da fúria da natureza e da resiliência humana —desta vez, porém, personificada na figura de uma mulher e acrescida de contornos românticos.
Dois aventureiros apaixonados, Tami Oldham (Shailene Woodley) e Richard Sharp (Sam Claflin) partem do Tahiti em direção a San Diego, na Califórnia, a bordo de um veleiro. A jornada é interrompida por uma violenta tempestade.
A desgraça dos navegadores se apresenta já na abertura do longa, quando a moça de 24 anos recobra a consciência após a passagem do furacão. Toda ensanguentada, ela percebe que o parceiro não está no barco —parcialmente destruído— e se desespera diante da imensidão do oceano Pacífico.
A partir daí, flashbacks que remontam o romance genérico e perfeitinho do casal se intercalam com os contrasdio tes do pesadelo em alto-mar, contado de trás pra frente e preenchido por efeitos especiais de tirar o fôlego.
Embora funcione em termos visuais, a estrutura atrapalha o ritmo da narrativa, um vai e vem meio truncado, de marear qualquer sujeito.
Fora que os melhores momentos dos personagens acontecem quando eles estão à deriva, e não na paradisíaca Polinésia Francesa.
Depois de resgatar Richard, gravemente ferido, Tami trava uma verdadeira batalha física e emocional para salvar a si e ao noivo. E esse é, sem dúvida, o recorte mais atraente da produção, impulsionado por uma atuação convincente de Woodley.
A protagonista do choroso “A Culpa É das Estrelas” (2014) e da série “Divergente” constrói uma heroína forte, capaz de enfrentar inúmeras adversidades ao longo dos 41 dias sem rumo.
Claro que, diante de um contexto tão hostil, o filme não escapa do viés motivacional, embutido nas mensagens óbvias de superação. O final inesperado, entretanto, ameniza o clima de dèja vu.
Deslizes à parte, o longa “Vidas à Deriva” se sai bem em seu retrato de luta pela sobrevivência.