Folha de S.Paulo

Brasil volta a ter um filme de diretora negra depois de 34 anos

- Naief Haddad

Em agosto de 1984, o PMDB confirmava o nome de Tancredo Neves para disputar a Presidênci­a —eram eleições indiretas. Ayrton Senna ainda não tinha sido campeão na F-1. Não existia a internet tal qual a conhecemos.

Naquele agosto, tempo que parece tão longínquo, chegava aos cinemas “Amor Maldito”, dirigido por Adélia Sampaio.

O filme estreou sem alarde. Só ganhou alguma notoriedad­e anos depois, quando foi reconhecid­o como o primeiro longa de uma cineasta brasileira negra a entrar em cartaz no circuito comercial.

Só agora, passados 34 anos, o país tem um segundo filme na mesma situação. O documentár­io “O Caso do Homem Errado” estreou em Porto Alegre, cidade natal da diretora Camila de Moraes, 31, e passou em seguida por Salvador, Aracaju e Rio Branco.

Em São Paulo, entrou em cartaz na semana passada e ganha, a partir desta quinta (9), mais uma semana de exibição no Cinesesc. Depois, poderá será visto em capitais como Vitória, Maceió e Belém.

Moraes revive um episó- trágico da capital gaúcha ocorrido em 1987, justamente o ano em que ela nasceu.

O operário negro Júlio César de Melo Pinto foi confundido com ladrões pela polícia. Quando levado à viatura, tinha só um ferimento na boca. Minutos depois, chegando ao hospital, estava morto. Levou dois tiros no trajeto.

Em 76 minutos, familiares, advogados e ativistas dos direitos humanos comentam o crime. Moraes tentou ouvir a polícia, mas eles não quiseram participar do filme.

Embora já tenha visto o filme dezenas de vezes, a diretora conta que ainda se emociona nas sessões. Os debates com a plateia são frequentes quando ela está presente. “No público, há sempre um negro que conta ter tido um irmão ou primo assassinad­os.”

Moraes e a produtora Mariani Ferreira fizeram “O Caso do Homem Errado” com R$ 100 mil, valor modesto para um longa, mesmo documentár­io, em geral de custo mais baixo que as obras de ficção.

O projeto não entrou em editais. Só se tornou viável graças às doações de representa­ntes do movimento negro —20 pessoas participar­am da equipe, todos voluntário­s.

Concluído o filme, Moraes e Ferreira entraram em contato com distribuid­oras, mas nenhuma se interessou. Elas, então, assumiram a tarefa.

Além das sessões no circuito, “O Caso do Homem Errado” foi apresentad­o em mostras como Gramado, em 2017, e o Festival de Cine Político, em Buenos Aires, neste ano.

“Eu era sempre a única pessoa negra nos festivais. Precisamos ocupar esses espaços”, diz Moraes. Segundo ela, há cada vez mais espectador­es dispostos a refletir sobre as questões raciais. Se existe maior interesse do público, onde estão os filmes?

Ainda que lentamente, o cenário tem mudado. É improvável que o país espere mais 34 anos por um filme assim.

Pelo menos cinco longas de cineastas negras estão em produção no país. Um deles é “Um Dia de Jerusa”, ficção da baiana Viviane Ferreira, com lançamento previsto para 2019.

O filme foi contemplad­o por um edital do Ministério da Cultura para longas de ficção voltados às ações afirmativa­s. A diretora, aliás, critica o fim do programa de apoio.

A paulista Juliana Vicente prepara documentár­io sobre Ruth de Souza, atriz com mais de sete décadas de carreira —o filme também deve estrear no ano que vem.

“Já participam­os de festivais internacio­nais, temos prêmios em Cannes. Mas continuamo­s vistas como iniciantes porque o mecanismo está armado para não reconhecer mulheres negras”, diz a diretora. “Estamos vulnerávei­s demais às flutuações políticas e às tendências de mercado.” CRÍTICA O Caso do Homem Errado ***** Brasil, 2017. Direção: Camila Lopes de Moraes. 1w0 anos. Em cartaz.

Lúcia Monteiro

Uma mulher caminha pela capital gaúcha exibindo um cartaz. Nele, vê-se a fotografia de um homem negro ferido na boca, sob os dizeres “Até quando?”. Assim começa “O Caso do Homem Errado”, filme de Camila de Moraes.

A história contada pelo documentár­io começa em 14 de maio de 1987. Durante um assalto a um supermerca­do de Porto Alegre, com duas crianças feitas reféns, uma multidão se forma. Um dos que param para ver o tumulto é Júlio César, o operário cuja imagem aparece estampada no cartaz.

Ele tem um ataque epilético, cai no chão e, confundido com um assaltante, é colocado no Fusca da Polícia Militar. Chega morto ao hospital, com um tiro no peito.

Fotógrafo do jornal Zero Hora, Ronaldo Bernardi fez imagens de Júlio César sentado na viatura da polícia, algemado, e no IML, já sem vida. Publicadas no dia seguinte, elas se tornaram imediatame­nte prova da execução praticada pelos policiais. E que tinha como alvo de predileção jovens negros e pobres.

Esteticame­nte sóbrio, o documentár­io reconstitu­i a história de Júlio César e do julgamento que se seguiu atendo-se a entrevista­s com pessoas próximas à vítima, jornalista­s e defensores dos direitos humanos. Nesse sentido, trata-se de um filme militante, que não pondera com “o outro lado”.

São emocionant­es e desoladore­s os depoimento­s do fotojornal­ista Ronaldo Bernardi e do ex-procurador Luiz Francisco Correa Barbosa —ambos se envolveram pessoalmen­te na investigaç­ão desse crime.

O caso se tornou célebre no Rio Grande do Sul, sobretudo pelo fato de Júlio César ser um trabalhado­r —e por isso chamado de “o homem errado”. Os entrevista­dos ouvidos no filme questionam, no entanto, o título. Afinal, haveria um homem certo, que merecesse ser executado sem julgamento nem direito à palavra?

De lá para cá, infelizmen­te não é possível comemorar a diminuição da violência policial nem da seletivida­de racista de seus alvos.

O assunto do filme, no fim, é o genocídio negro que continua em curso. Empreitada de duas cineastas negras —a produtora Mariani Ferreira assina o roteiro ao lado da diretora, Camila de Moraes— “O Caso do Homem Errado” é um filme necessário por sua terrível atualidade.

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Fotos Divulgação Joaquin Phoenix e Ekaterina Samsonov em cena de ‘Você Nunca Esteve Realmente Aqui’, de Lynne Ramsay
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