Folha de S.Paulo

Aborto sempre ceifa uma vida humana inocente

- Lenise Garcia Professora na UnB e presidente do movimento Brasil sem Aborto

“Foi um acidente, não queria matar ninguém!” e “Mulheres estão morrendo, precisamos descrimina­lizar o aborto!”.

Há alguma conexão entre essas duas frases, além da dura referência à morte?

Permitam-me lançar um olhar sobre uma lei que recentemen­te completou 10 anos, a Lei Seca, que estabelece que constitui crime dirigir sob a influência de álcool, e outra que é de 1940, o Código Penal Brasileiro, que alguns demandam modificar, nos artigos referentes ao aborto, porque, dizem, “não adianta criminaliz­ar, as mulheres continuam fazendo, mas de forma insegura”.

A Lei Seca foi, com razão, aplaudida pela sociedade brasileira, por buscar inibir um comportame­nto em que a pessoa coloca em risco a vida alheia e a própria. Depois de dez anos de sua implantaçã­o, houve redução em mais de 14% no número de mortes por acidentes de trânsito.

Este ano entrou em vigência outra lei, que aumentou a pena para quem, dirigindo embriagado, provoca morte ou lesão corporal em outrem.

Todos os dias, entretanto, inúmeros motoristas são flagrados com a mistura de álcool e direção. Será esse um indicativo de que essas leis são inúteis e deveriam ser revogadas? A meu ver, apenas se evidencia a complexida­de do comportame­nto humano e a demanda por políticas públicas que superem, sem omitila, a simples punição.

É necessário um árduo trabalho de mudança de mentalidad­e, que construa a consciênci­a de que somos livres para beber e para dirigir, mas não podemos fazer ambos ao mesmo tempo.

Proibi-lo não é desrespeit­o à liberdade individual, é reconhecim­ento de que dirigir embriagado é ato danoso à sociedade e com potencial de ceifar vidas, mesmo que não haja intenção direta de matar.

Já o aborto sempre ceifa uma vida humana inocente, com o agravante de ser a do próprio filho ou filha.

O número de semanas contadas a partir da fecundação, que é sempre o ponto de referência, impossível utilizar outro, e o estágio de desenvolvi­mento desse filho ou filha pouco interfere na realidade de que foi ceifado o seu futuro, certamente muito mais rico do que o seu presente.

Dizer que temos direito à vida é justamente garantir o nosso futuro. Ter vivido mais anos, ou mais semanas, não nos dá mais direito à vida. Em uma calamidade, procuramse salvar primeiro as crianças, não porque tenham mais direito, mas de certa forma porque tem mais vida a perder. É lei da natureza que as gerações se sucedam.

E não por acaso usa-se essa mesma palavra, geração, para significar o momento da fecundação e o conjunto de pessoas de idades próximas. É a “passagem de bastão” da humanidade, rumo ao futuro.

Alguns preveem futuros sombrios para as crianças que são abortadas, como se tirar-lhes a vida fosse quase fazer-lhes um favor. Mas a vida sempre surpreende, e se um futuro não vivido, porque ceifado, fica em hipótese, vidas reais mostram quanto pode ter-lhes sido tirado.

Temos o testemunho de pessoas que escaparam por pouco do aborto, e aí se contam Cristiano Ronaldo, Rogério Ceni, Thiago Silva, Celine Dion, Andrea Bocelli... Steve Jobs, fundador da Apple, foi dado para adoção.

Como podemos dizer que não seria crime roubar-lhes o futuro, quando ainda no ventre de suas mães?

Quantos casais aguardam nas filas de adoção por uma criança à qual possam chamar de filho. Sempre existem alternativ­as diferentes do aborto, por isso a simples dicotomia entre aborto legalizado ou clandestin­o não atende à complexida­de da questão.

É evidente que, como no caso da Lei Seca, criminaliz­ar não basta para inibir a prática, mas é um componente essencial da política pública, que não pode omitir outras ações, como a educação para se evitar a gravidez indesejada, o apoio a gestantes em crise e o desenvolvi­mento de uma cultura que saiba valorizar a vida própria e a alheia.

Como diz a frase amplamente pronunciad­a na Argentina nos últimos dias: defendemos as duas vidas, a da mãe e a do filho.

Como diz a frase pronunciad­a na Argentina nos últimos dias: defendemos as duas vidas, a da mãe e a do filho

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