Folha de S.Paulo

Ah, PT, que loucura te pegou?

O PT inverte Shakespear­e e inventa o método com loucura

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

“Ah, PT, quae te dementia cepit?” Parafrasei­o o poeta latino Virgílio na “Segunda Écloga”, embora a fala “Ah, Corydon, quae te dementia cepit?” seja reflexiva —isto é, o pastor Corydon pergunta a si mesmo: “Que loucura te pegou” ao se perceber apaixonado, não mais dono da própria vontade.

Por mais que alguns colegas analistas queiram ver método na decisão do PT de lançar o que a internet se diverte chamando de “candidatur­a tríplex”, não tenho como não saltar uns séculos, até Shakespear­e, indo do lirismo condoído à tragédia, e inverter o sentido da frase de Polônio ao comentar as maluquices de Hamlet, aquele atraente destruidor de reinos. Fica assim a minha adaptação sobre a estratégia petista: “É método, mas tem loucura”.

Entreviste­i nesta quinta Fernando Haddad em evento promovido por um banco de investimen­to. Ele é “candidato a vice” na chapa petista à Presidênci­a, que terá Lula como titular, até que o TSE bata o martelo e declare a inelegibil­idade do ex-presidente, com referendo certo do STF.

Fiz a Haddad a pergunta tão óbvia como necessária: é possível governar o país em nome de outra pessoa? É razoável um exercício terceiriza­do da Presidênci­a, esteja o titular simbólico na cadeia ou no paraíso?

Como a idade e a independên­cia me garantem a faculdade de dizer tudo, ainda que sob o preço de aborrecer as pessoas —não tendo o nariz de Voltaire, procuro ao menos o senso de pertinênci­a impertinen­te—, observei, sim, que Lula foi condenado sem provas no processo do tríplex. Ruim para o Estado de Direito? Ruim. Mas há o mundo de fato. E o candidato já é Haddad, embora seja proibido reconhecê-lo nas hostes petistas.

Uma jornalista se apresentou antes do início do evento: “Sou da assessoria do presidente Lula”. Meu primeiro impulso foi indagar: “Ele já chegou?” Não o fiz porque seria um constrangi­mento inútil a quem, afinal, cumpria as exigências metódicas da loucura.

Haddad, professor universitá­rio, tem uma fala suave. Estendeu-se um tanto sobre a impropried­ade jurídica da condenação e exaltou o que considera a capacidade de diálogo do ex-presidente, sua habilidade em estabelece­r consensos, sua tolerância com o contraditó­rio, sua disposição para ouvir etc. Afirmou, no entanto, que Lula não é seu “oráculo” —espero que Gleisi Hoffmann não se zangue por isso...—, mas alguém cuja experiênci­a deve servir de baliza.

Ok. Ocorre que, neste momento, há petistas que já estão se incomodand­o com o que consideram “excesso de exposição do vice”. Isso correspond­eria a uma espécie de conformism­o com a condenação de Lula.

O que me parece evidente, a esta altura, é que o PT atua para que a inelegibil­idade de Lula, embora materializ­ada, não esteja juridicame­nte definida até o início do horário eleitoral, no dia 31 deste mês.

Como o TSE tem até 17 de setembro para liquidar o assunto, o ex-presidente apareceria no horário eleitoral como o candidato do partido. Declarada a impossibil­idade de sua candidatur­a, só então Haddad seria apresentad­o como o “Lula alternativ­o”. No melhor dos mundos para os metódicos da loucura, haveria três semanas para que se operasse a transferên­cia de milhões de votos.

Ocorre que tal processo não se dará sem que se produzam catilinári­as de lesa democracia contra a legitimida­de de um pleito sem Lula. A um só tempo, os petistas estarão denunciand­o as eleições e lançando um nome para representa­r o demiurgo na aposta ensandecid­a de que ele poderá, da cadeia, governar o país. Mas notem! Esse é o cenário favorável ao PT.

A avalanche rumo a Haddad pode não acontecer. Nesse caso, cabe a pergunta: se uma eleição sem Lula padece, segundo a legenda, de um déficit de legitimida­de, que pode ser minorado com a eventual eleição de um petista, o que fará o partido sem um nome seu no segundo turno?

A resiliente truculênci­a fascistoid­e e burra, despertada pela banda “dark” da Lava Jato, bate à porta do regime democrátic­o. E os loucos metódicos do PT parecem dispostos a convidá-la para uma dança de inimigos à beira do abismo.

“Ah, PT, quae te dementia cepit?”

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