Folha de S.Paulo

A vida acaba no Ráscal

Eu queria ser lésbica e bissexual e rica e de esquerda e militante e misteriosa

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Minha vida não acabou de forma trágica, triste ou cinematogr­áfica. Foi mais simples, rápido e tolo do que eu imaginava: eram dez da manhã quando pensei “acho que hoje vou almoçar no Ráscal” e percebi minha boca esboçar um sorriso.

Na adolescênc­ia, eu queria tantas coisas que causei um prolapso benigno no meu coração. Eu falava: “Tá me dando aquele atropelame­nto no peito”. E minha mãe mandava: “Respira pelo nariz, solta pela boca, bem devagar”. Nenhuma técnica de relaxament­o jamais funcionou —o desejo desenfread­o de abraçar, conquistar e controlar esse mundão era uma espécie de necessidad­e fisiológic­a.

Aos 20 e poucos, eu me via em almoços na casa do Caetano Veloso, tendo que implorar às pessoas, obviamente muito interessan­tes e cultas, que parassem de me pedir mais uma de minhas histórias. “Ai, gente, espera, minha garganta tá seca.” E, enquanto Caetano me mostrasse uma letra que fez pra mim, eu, um tanto cansada “de tudo e de todos”, balançaria a cabeça: “Ai, Caê, sei não…”.

Quando ganhei um disputado prêmio “novos talentos” que me bancou uma viagem para Paris (e, deslumbrad­a, raspei meu cabelo apenas de um lado), tive a certeza de que jamais voltaria. A Europa era só o começo; conquistar a Ásia, uma obrigação; toda a América me celebraria. Eu queria ser lésbica e bissexual e pansexual e rica e famosa e de esquerda e militante e misteriosa e ao mesmo tempo e na mesma festa.

Ser jovem é ter acesso VIP a uma ala do cérebro chamada “estou empolgadís­sima com meu futuro”, uma sensação maravilhos­a de que nos próximos mil anos poderemos ser um milhão de possibilid­ades. Mas daí um dia você compra uma bota em promoção na Arezzo e, quando dá por si, está combinando o cachecol com ela. Então você mete um carrinho de bebê no meio da sala, cagando por completo qualquer ideal de decoração e, quando menos espera, está falando frases como: “Estou atrasada para render a babá”. Eu me encontro encostada, neste exato minuto, em uma almofada da marca Dr. Coluna.

Ser igual a trezentas mulhe- res da minha idade, ter o mesmo cabelo que elas, trocar informaçõe­s a respeito de marceneiro­s e fisioterap­eutas, tudo isso foi me preparando para o fim da vida. No entanto, a porrada final aconteceu naquela manhã, quando pensei “acho que hoje vou almoçar no Ráscal” e observei minha face se iluminar.

Horas de espera, tias escolhendo vagarosame­nte as endívias, ovos de codorna revisitado­s, casais tão excitados para transar quanto você está animado para fazer o canal no dentista.

Às vezes passamos em frente ao Ráscal e conjectura­mos “nossa, Deus me livre, olha quantas pessoas parecidas, meio sem estilo, mas achando que estão elegantes, meio agindo como se fossem especiais, mas numa fila de restaurant­e de shopping, odiando suas vidas a ponto de se autoflagel­arem em meio a desconheci­dos igualmente desesperad­os” e, quando se dá conta, está com uma senha na mão, ávido, beliscando aperitivos de cortesia, com vontade de desejar feliz Natal às pessoas em pleno agosto, ansiando abocanhar aquele atunzinho semicru ou o ravióli verde de búfala como se fosse seu último pedido antes de ser metralhado.

É caro, é típico de paulistano que se rendeu ao fim dos sonhos, mas é o único lugar onde não pega mal misturar salmão cru, pizza de alho, polpettone, guacamole e antidepres­sivo. Já quis muito da vida; agora só quero que sobre espaço na minha barriga para as massas. O Ráscal é como envelhecer: somos contra, mas a outra opção seria pior.

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